A Costureira Idília
Maria Idília começou a trabalhar no Hospital Colónia Rovisco Pais (HCRP) em 1970. O pai, Manuel Almeida, já trabalhava no Hospital há 25 anos como alfaiate e foi ele que insistiu que viesse trabalhar também: “eu tinha 19 anos e não era permitido entrar com essa idade. Era raro aquele que queria vir para o hospital devido ao medo da doença da lepra… Mas como o meu pai tinha muito gosto em que eu viesse trabalhar para aqui e fez pressão dizendo: tu vais comigo e o ordenado que ganhares é para ti… A minha mãe não estava de acordo, mas eu aproveitei e vim como costureira. Na altura, custou-me um pouco, mais fiquei até aos 62 anos…
D. Idília confessou que os primeiros tempos foram difíceis: “Quando vim pensei: aí meu Deus eu não me vou habituar, porque quando via os doentes eu ficava em choque, arrepiava-me de ver pessoas com tantas mazelas. E, naquela altura, eles andavam em todo o recinto, não é como agora que estão quase sempre nos pavilhões. Logo de manhã faziam fila na portaria. Um dia, eu vinha sozinha, pois nesse dia o meu pai não veio trabalhar, e um doente, o Sr. Abel, que não me conhecia, disse-me: Ó cachopa tu és nova cá na gaiola? Eu fiquei assustada, trabalhava há pouco tempo e não estava preparada para aquelas palavras. Contei o sucedido a um enfermeiro e ele disse para não ter medo, pois contou-me que havia dias em que ele não andava bem. Ele ia para as valas, fazia parar os carros, metia-se connosco e eu comecei a ter medo. Um ano depois, quando o meu pai faleceu, as minhas colegas passaram a esperar por mim na portaria. Ajudaram-me nesse aspeto. Todas foram minhas amigas.”
No serviço de costura, que se situava na lavandaria, trabalhavam dois alfaiates e oito costureiras. Faziam roupa para os doentes (camisas calças, blusas, saias, ceroulas) e fardamento para médicos e enfermeiros. “Não havia roupas compradas. Era tudo feito por nós, até os lençóis. Os tecidos eram escolhidos pela qualidade, depois iam a concurso e adquiria-se pelo preço. Mandava-se vir em quantidade. Os casacos de inverno eram de cheviote, as calças, de cotim e as camisas de pano cru. Fazia-se muita quantidade, quatro camisas por dia, as máquinas eram elétricas, o que era uma boa ajuda. Uma costureira cortava uma boa quantidade e depois todas faziam.” Recorda que no trabalho “havia colegas mais apressadas que faziam a camisa mais rápido (…) eu era mais nova, atrasava-me. Era bonito. Trabalhávamos ao desafio!”
Explicou que no Preventório também havia uma costureira, a D. Dalila. E que ainda foi para lá substitui-la durante as férias.
Depois de confeccionada, a roupa feita no Hospital era enviada para o armazém e dali seguia para os pavilhões consoante as necessidades.
Nesse tempo, conta que havia sempre uma freira à frente dos serviços “na costura era a Irmã Rosália, na lavandaria a Irmã Marta e na cozinha a Irmã Maria”.
Prossegue contando ainda que: “Ganhávamos 600$00. Era muito pouco! Mas mesmo assim íamos todas satisfeitas ao Conventinho. O Sr. Conde, é que estava à frente desse serviço ele telefonava e dava ordem para irmos receber. E nós, num tempo tão pobre, fazíamos fila para receber o dinheiro e como comíamos fiado, íamos pagar, às lojas. Eu recordo que no dia do pagamento ia ao serviço social, onde funcionava a cantina para funcionários, e levava umas bolachas, uns rebuçados com o dinheirito que recebia. No dia do pagamento era uma alegria, era uma festa, com o pouco que se ganhava!”
D. Idília disse-nos que o HCRP era um local bonito e explicou que “quando entrávamos ouvíamos música, porque os doentes vinham para as varandas e faziam festa no hospital. Nós ao entrarmos de manhã, ouvíamos a música (acordeão ou saxofone). Eu ficava encantada. Erámos novas e nós gostávamos…. Era bom para os funcionários e para eles. Porque estavam aqui doentes muito novos!”
Conta ainda, que “mais tarde, já convivíamos com os doentes como se fossem nossos familiares.” E falou com carinho o casal de doentes Leónia e Sr. Cavaco que viveram nos Núcleos Familiares até falecerem. Continuou a trabalhar após a reconversão do Hospital Rovisco Pais para Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro, em 1996, e recorda que “no início havia muitos doentes, depois foram falecendo e foram-nos juntando num único pavilhão. Naquele tempo havia menos funcionários que agora.
D. Idília reformou-se em 2013 e na fase final já era a única costureira. As roupas eram compradas e ela trabalhava na portaria, entregando-as e fazendo ajustes, quando necessário. Partilhou: “Senti saudade nos primeiros tempos que fiquei em casa. Havia qualquer coisa que me faltava…”
Fazendo um balanço, do tempo em que esteve na única instituição em que trabalhou, D. Idília sublinhou que fez quarenta e três anos de serviço, um dos quais ainda com o pai e que considera que: “foi bonita a nossa passagem por aqui, encontramos pessoas amigas. Faz de conta que era uma família!”
Texto baseado em testemunho oral, em 2022. Validado pela entrevistada. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge