A cozinheira Guilhermina

Guilhermina era de S. João da Pesqueira e veio trabalhar para o Hospital Colónia Rovisco Pais em 1968. O cunhado já ali trabalhava, como chefe da cozinha e a dada altura chamou o irmão. “Como não fazia sentido o meu marido estar na Tocha e eu e os meus quatro filhos estarmos longe, passado um mês de cá estar, arranjou a vidinha dele e nós viemos também.”

“O meu marido trabalhava no armazém era serventuário, andava por fora, ia para o Porto, Lisboa, Coimbra, levava uma lista do chefe e ia com um motorista fazer as compras para o hospital.”

 

Guilhermina veio trabalhar para o Hospital quando tinha 32 anos e começou na lavandaria – “lavava a roupa das Irmãs e passava-a a ferro com uma delas. Nessa época estavam no conventinho quase 30 irmãs.” Já não se recorda do nome da primeira irmã com quem trabalhou, apenas que era da Madeira e que as seguintes se chamavam Deolinda e Marta. Contou-nos que a roupa dos doentes era lavada por funcionários e que na lavandaria havia tambores enormes e uma calandra grande para os lençóis e os travesseiros.

Gostava de trabalhar na lavandaria. Mas confidenciou-nos que “quando vim para aqui isto ainda estava muito infetado e eu tinha muito receio”. Nos primeiros tempos quando tinha que levar as batas e as calças engomadas aos médicos do hospital “tinha tanto medo, ficava impressionada com as feridas que os doentes tinham. Eles estavam tão martirizados mutilados, tinham tantos ferimentos… Alguns eram cegos, outros com mãos e pés tolhidos ou mutilados… Se eu tivesse vindo trabalhar para junto deles eu não aguentava porque me arrepiava toda. Eu não sei, não tem explicação, aquilo era superior a mim. Eu não conseguia. Era mais isso, que o próprio contágio! Era vê-los e ver aquele sofrimento. Se fosse um familiar meu eu não aguentava ir visitá-lo.”

Desta fase inicial, recordou também como tudo estava bem organizado, limpo e bonito: “nem queira saber, quando eu vim para aqui, isto era um paraíso. Havia flores por todo o lado, as casas estavam sempre pintadinhas, o chão era brilhante! Tinham aqui uma limpeza! Era qualquer coisa bonita de se ver! E, os jardins eram lindos!” E, naquele tempo, lá fora, nem todas as pessoas tinham casa de banho…

Guilhermina mencionou que havia um capataz que tratava muito bem de tudo e “o pessoal trabalhava com gosto, com opinião, presunção em ver isto lindo”.

 

Algumas vezes, foi requisitada para limpar os gabinetes dos administradores, no conventinho, e no caminho apanhava flores para a jarrinhas de cada um dos gabinetes. Uma vez, o capataz disse-lhe: “ó menina não venhas aqui buscar o que tenho arranjado (colher flores). Isto é só para a gente ver este paraíso, disse ele. Mas como eu lhe dizia que era para os gabinetes ele deixava-me tirar uma aqui, outra ali. Não podia tirar todas do mesmo sítio!”

 

Três anos depois foi trabalhar para a cozinha e sobre esta transição contou-nos: “Eu gostava muito de cozinhar, um dia fui fazer uma folga de um cozinheiro, fui para lá e nunca mais me de lá tiram, cheguei ir à secretaria perguntar, porque eu gostava de estar na lavandaria! Não é que eu não gostasse da cozinha, mas era uma responsabilidade muito maior. Disseram-se que enquanto eu estivesse no Hospital, era na cozinha que eu estava, e eu não tive outro solução se não aceitar. Não podia ir para casa pois tinha quatro filhos para criar e tinha a minha sogra comigo. Tinha que trabalhar.”

E foi num dos edifícios mais bonitos da Colónia, do ponto de vista arquitetónico, que passou a trabalhar. Fazendo-nos um retrato de como era por dentro e do seu funcionamento, disse: “a cozinha geral estava bem organizada e era bastante funcional. Possuía três compartimentos – um para peixe, outro para batatas e hortaliças, e outro para lavar a loiça que se sujava na cozinha. A loiça dos doentes era lavada em local separado e colocada em caixas térmicas que iam para desinfeção. Tínhamos tudo para poder trabalhar e para trabalhar bem, não faltava nada, e da despensa, que era enorme e ficava junto à cozinha, vinha tudo o que era preciso.”

 

Prosseguindo, Guilhermina conta-nos, com boa disposição, uma das partidas que os colegas lhe fizeram quando para lá foi trabalhar: “Na cozinha, onde se fazia o comer para os doentes, havia uns caldeirões enormes. Eu cabia lá dentro. Uma vez, um dos cozinheiros agarrou-me ao colo e colocou-me dentro do caldeirão e fechou-me a tampa. Eu assustei-me com aquilo e gritei – tirem-me daqui! Mas eles riram-se, riram-se. Faziam-me partidas por eu ser a mais nova… E, às vezes eu queria trabalhar e eles tiravam-se as coisas. Era a brincadeira!”

Depois os colegas mais velhos foram-se aposentando e Guilhermina ficou responsável pela cozinha. Nessa altura já definia as ementas com o Sr. Pais Alves.

 

Quisemos saber como era a alimentação no Hospital Colónia Rovisco Pais e Guilhermina contou-nos que “todos os dias havia carne e peixe, um ao almoço e outro ao jantar. (…) Os médicos iam provar o comer antes de ser servido para os doentes. A comida era muito boa.”

Serviam cozido à portuguesa, jardineira, feijoada, grão com bacalhau, carne estufada com arroz, bifes com batata frita, esparguete com carne, bacalhau à Gomes Sá, bacalhau-à-brás, arroz à valenciana, feijão-frade com peixe frito, arroz de coelho, coelho estufado com arroz seco ou com batatas fritas. Por ocasião das festas de Natal, Páscoa e Ano Novo também fazíam leitão, perú assado, bolos de bacalhau, rissóis, arroz doce, aletria, filhoses e rabanadas.

“Olhe eles eram muito bem tratados! Só que às vezes também se aborreciam do comer” contou Guilhermina, que não esquece um episódio em que um doente atirou com o prato da comida contra a janela da cozinha. Na sequência deste incidente “fiz uma travessa e levei-a ao refeitório, onde estavam funcionários e pedi que provassem. Todos disseram que estava bom.”

 

Guilhermina explicou que no início havia muita produção própria na Colónia e havia “muitos funcionários a trabalhar nas terras. Criavam porcos e vacas, produzia-se leite, batata, feijão-verde, hortaliça diversa, favas, cenouras…” “E os padeiros faziam pão. Pão tão bom! Com farinha de primeira! Em nenhum lado os doentes eram tão bem tratados. E tínhamos cá um chefe, o Sr. Pais Alves que se preocupava muito. Perguntava-me sempre – Guilhermina está tudo bem? Acompanhava tudo, e também as terras e pocilgas. Era um bom funcionário, empenhava-se para que tudo corresse bem, para que não faltasse nada aos doentes. Era humano!”

 

Nos núcleos familiares viviam casais de doentes que cozinhavam as suas próprias refeições. Recebiam os géneros da despensa da cozinha. “E levavam tudo o que era bom, carne de vaca, frango, peixe e bacalhau. Tinham tudo o que era bom, ovos, tudo! E quando se faziam festas, iam buscar à cozinha as coisas já feitas.”

 

Para o Preventório, os produtos também eram fornecidos pela despensa da cozinha geral. “E tinham lá uma boa cozinheira. As vezes havia lá grandes congressos e eu ia lá ajudar. Eu ainda lá fui ao Preventório cozinhar com essa cozinheira. Mas tudo o que era bom era para aqueles meninos. E a diretora era muito zelosa e exigente.”

 

Guilhermina esteve “32 anos e dez meses” a trabalhar na cozinha do Hospital Colónia Rovisco Pais. Mesmo depois de se aposentar a comida do hospital, que ela cozinhava, foi várias vezes elogiada. Uma vez um dos seus filhos foi assistido no Hospital da Figueira da Foz e quando disse que trabalhava no Hospital da Tocha, o médico que o assistiu falou-lhe da magnífica sopa da D. Guilhermina. 

Texto baseado em testemunho oral, em 2021. Validado pela entrevistada. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge