Albano Pais de Sousa, quase 50 anos ao serviço do Hospital
Albano Fernando Lopes Pais de Sousa, nasceu em 1938 e iniciou funções como escriturário de 1ª classe no Hospital Colónia Rovisco Pais em 1957. No início da entrevista, confidenciou que “o Rovisco Pais foi a minha vida e o futuro dos meus filhos. Foi um dos pólos da minha vida, foi este, e a família e estive lá 44 anos. Só não fiz 50 anos de serviço por razões familiares!”
Recorda-se que conheceu o Dr. Manuel dos Santos Silva, primeiro diretor do HCRP durante a infância. A sua ligação à Tocha começou ainda em tenra idade. “A minha mãe é que era de Cantanhede e quando o meu pai faleceu ficámos em más circunstâncias, com dificuldades financeiras. A vida que o meu pai (José Pais de Sousa) fazia, já não a podíamos ter… Eu penso que a minha mãe ainda nos levou um ano ou dois para a Figueira da Foz no verão, mas depois passamos a vir para a praia da Tocha. A viagem era realizada num carro a cavalo, trazíamos colchões e andavamos com uns calçõezitos de manhã à noite. Naquela altura, na praia da Tocha só havia palheiros. As pessoas só se serviam deles no fim das colheitas, em outubro, por isso, emprestavam-nos durante o mês de agosto!”
Foi trabalhar para o HCRP mas disse que “A vida que me estava desenhada não era esta! Estudei em Coimbra onde fiz o 1º ano no Liceu D. João III, o 2º ano em Cantanhede e voltei até ao 6º ano para o colégio de S. Pedro em Coimbra. Mas quando o meu pai faleceu tudo se alterou. Tinha um tio que era armador, possuía barcos de bacalhau em Aveiro, e queria que eu seguisse estudos na Escola Naútica. Como era o mais pequenito, passava muito tempo em casa deles. Meses antes de fazer 18 anos fui passar férias ao Buçaco, junto dos tios que possuiam a fábrica de laranjada. Adoeci, com uma “otite”, e complicou-se de tal maneira que já não pude entrar em outubro para a Escola Naútica. Como não havia condições económicas para me formar na universidade, pensaram arranjar-me colocação. Assim, fiz 18 anos em setembro 1956 e no dia 1 março de 1957 já estava colocado no HCRP, onde fui fazendo os concursos de promoção necessários.”
Quando entrou ainda esteve na parte dos armazéns e da contabilidade “mas depois passei para a secretaria e nunca mais de lá saí. Já não trabalhei com o Dr. Manuel Santos Silva no Hospital, só mais tarde no antigo Conselho Municipal de Cantanhede”. E foi falando dos diretores e dos administradores que o Hospital teve facultado a portaria n.º 17.236/1959 e o decreto-lei n.º 43.756/1961 que definiam o quadro de pessoal da direcção e chefia do Hospital, em 1959 e em 1961. No tempo dele foram administradores foram o Dr. Alberto Machado e o Dr. Manuel Neves (que era de Portunhos). O chefe da secretaria era o Sr. Eurico Garcia Ferreira da Silva, que esteve até ao limite da idade, eu ainda trabalhei com ele! Quando iniciei funções, o diretor do HCRP era o Dr. Pais Ribeiro e o administrador era o Dr. Alberto Machado. Que foi meu amigo até falecer (…). Depois sucedeu-lhe o Dr. Viriato Namora, que dali foi para o Hospital dos Covões, em Coimbra.” Refere, que o Dr. Namora foi também um grande amigo, tendo beneficiado da total confiança na sua pessoa, ao ponto de se deslocar em seu nome ao Centro de Recuperação de Espariz-Tábua, portador de uma “Credencial” em que lhe dava plenos poderes para alterar em seu nome, qualquer organização, que entendesse não estar correta e achasse que devia ser corrigida. Quando saiu, para o Hospital dos Covões, convidou-o também para o acompanhar e ir trabalhar consigo.
O Sr. Albano participou em vários concursos de promoção e subiu rapidamente. “Com 26 anos já era 1º oficial, lugar que ocupei durante muitos anos. Só após o 25 de Abril 1974 é que passei a chefe da secretaria do HCRP. Era um cargo atribuído por nomeação e o Dr. Magalhães Basto, que esteve no HCRP, e estava, na altura, num organismo que antecedeu as atuais Administração Regional de Saúde, no Porto, conhecia o meu trabalho e sabia que eu substituia o chefe da secretaria, inúmeras vezes…”
“Dediquei-me de alma e coração ao HCRP, houve anos em que nem gozei a licença, nessa altura não era férias… Hoje é obrigatório.”
“Se um dia estudasse gostava de ter tirado Direito. Eu gostava de todo o meu trabalho, de tudo, mas especialmente das leis. Ainda tive que estudar direito administrativo para os concursos de promoção…” respondeu a propósito do que mais gostava no seu trabalho.
O seu local de trabalho situava-se no rés-do-chão do Conventinho, edifício que, segundo explicou inspirou toda a arquitetura do hospital e que pertencera ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra. A sala da sua repartição ainda exibia as abóbadas originais do edifício “e penso que ainda se mantêm”. No piso superior residiam as irmãs de S. Vicente de Paulo que “fizeram sempre um trabalho excecional no Hospital”. A ampliação do mesmo já foi realizada quando lá estava, na parte da garajem, junto ao campanário. Na parte lateral e traseira do conventinho existia um quintal com uma horta de que se ocupava um funcionário “que apelidávamos de fradinho”.
Desenhados pelo arquiteto Carlos Ramos no final da década de 1930, os pavilhões principais, todos voltados para poente, só foram inaugurados em 1947, devido a dificuldades decorrentes da guerra. O Sr. Albano apressou-se a elucidar com entusiamo de quem estudou esta questão que “a entrada era feita por lá. Por causa da estrada antiga dos Morros. E que o portão antigo e o muro ainda lá estavam quando ocorreu a visita para avaliação da viabilidade do local para a construção do Hospital-Colónia”, protagonizada pelo Professor Bissaya Barreto e pelo Dr. Mário Pais de Sousa, Ministro do Interior, que era tio paterno do Sr. Albano. “Ainda me recordo de um marco com um S e uma cruz – de Santa cruz” acrescentou.
Quisemos perceber o que faziam os serviços administrativos do HCRP e o Sr. Albano elucidou: “Organizavamos os processos administrativos dos doentes e do pessoal, onde se encontrava atualizado o seu registo biográfico, além do registo de toda a correspondência, de entrada e de saída do HCRP e secretariávamos o Conselho de Gerência. Dos processos administrativos constavam, por exemplo, certidões de nascimento e declarações de internamento que os doentes precisavam. O arquivo clínico era à parte. Também organizavamos as notas de serviço interno, que incluíam indicações do Ministérios, do Instituto de Assistência aos Leprosos, da administração do Hospital e as resoluções de eventuais processos disciplinares. A sua distribuição interna era semanal e assegurada por um funcionário que circulava entre os pavilhões, de bicicleta. Fazíamos, igualmente, todos os serviços de admissão e saída do pessoal. Concursos de admissão e saída por aposentação, entre outros.”
Quando o Sr. Albano iniciou funções, o HCRP já estava em funcionamento há uma década – “trabalhava em pleno, e chegámos a ter mais de 1.100 doentes!”
O “Hospital era autosuficente, tinha tudo. O meio era pobre. Mas não podia faltar ali nada. A água, por exemplo, era tratada ali mesmo. O HCRP dispunha de lavandaria, armazéns, cozinha e despensa… Havia carpinteiros, sapateiros, mecânicos, alfaiates e costureiras e os doentes trabalhavam e tinham uma secretaria de internados, que funcionava junto ao Conventinho. Existiam brigadas de trabalhadores – estava previsto em lei. Os doentes trabalhadores eram organizados e tinham fiscais que assinalavam quem estava e não estava ao serviço naquele dia. Na secretaria havia uma conta de doentes. E eles podiam enviar o dinheiro que ganhavam para casa, para a família, com o auxílio do serviço social do Hospital. Esta secretaria de doentes permitia também fazer algumas mediações: “diversos problemas eram postos pela secretaria de doentes à secretaria de saúde. Nos processos disciplinares, por exemplo, nós tínhamos um funcionário que ouvia os doentes, num local junto ao Conventinho. Os doentes apresentavam as suas razões e depois o processo era ‘julgado’ pelo diretor de acordo com o regulamento.”
O pavilhão 9, havia uma pequena prisão que “criou muita confusão aos doentes” mas o Sr. Albano explicou que “havia doentes com pena de prisão, e que vinham cumpri-la ali. Depois havia doentes contagiantes que fugiam, que não queriam estar no Hospital, mesmo quando a lei os obrigava[1]. Nesses casos, a Guarda Nacional Republicana envolvia-se, eram castigados e por isso cumpriam penas ali.”
No pavilhão hospital, localizavam-se a farmácia, os gabinetes dos médicos externos que vinham dar consultas dos quais o Sr. Albano recordou: “um médico que era da unidade de queimados dos HUC (Dr. Veiga Vieira), outro da Maternidade Bissaya Barreto, (Dr. Rocha Santos), dentistas (Dr. Cândido, Dr. Arnaud, Dr. Rui Cristóvão, entre outros) e um oftalmologista (Dr. Albergaria Pinheiro). Funcionava também a sala de operações, onde o Professor Bissaya Barreto operava… Ainda o conheci. Depois do Dr. Pais Ribeiro ter saído do HCRP, o Professor Bissaya Barreto regressou e presidiu o Conselho de Gerência. E ainda fui secretariar as reuniões quando o chefe de secretaria não estava. Eu já era oficial e ele observava-me atentamente, mas não dizia nada…”
Em 1962 foram ampliados os serviços com a criação do Centro de Recuperação de Espariz (Tábua), um solar numa quinta que servia como um “sítio de passagem, acolhendo os doentes à medida que iam tendo alta, de forma a preparar a futura reintegração. Os contactos foram feitos pelo Professor Bissaya Barreto e a propriedade foi adquirida no tempo do administrador Dr. Alberto Machado. O centro possuía diretor e encarregado, este chamava-se Armando, tinha sido fiscal dos doentes no Hospital, e transitou depois para lá. E eu ainda lá cheguei a fazer serviço algumas vezes.”
“Este Hospital era internacionalmente conhecido” e nele estiveram diversas personalidades. O Sr. Albano recordou duas destas que o marcaram particularmente – a de um princípe da Indonésia, que esteve como doente internado e que era visitado diáriamente pela sua secretária, hospedada no Grande Hotel da Figueira da Foz; e a visita do Ministro da Saúde da Pérsia, acompanhado pela esposa. Neste último caso, referiu que o casal participou mesmo num baile organizado no bairro dos funcionários, onde funcionava um refeitório, a que chamávamos, na brincadeira, o ‘Hotel Macaco’!”
Do ponto de vista assistêncial “o Hospital Colónia Rovisco Pais foi construído para resolver o problema da doença e dos doentes e para isso contava-se com as sulfonas. Cumpriu a sua missão e nunca houve casos de contágio nos funcionários!”
Por último, quis falar nos dois temas principais, que foram a razão da existência do HCRP. “A figura do seu mentor, da personagem, da pessoa Ilustre, que foi o Professor Bissaya-Barreto, que construiu uma obra médico-social impar no centro do país, na beleza do Rovisco Pais, na sua arquitetura e dos seus jardins (que consta ter sido o próprio Professor Bissaya-Barreto, que desenhou) e nos seus doentes, que tive oportunidade de ver “in loco”, na serra e povoação do Soajo, o drama, a tragédia, a exclusão social e as condições desumanas em que viviam os doentes de “lepra”, quando, em serviço, me desloquei àquela povoação, para fazer um inquérito sobre as brigadas de enfermagem. O doente, que fui visitar, vivia afastado da povoação, numa pequena “barraca” encostada a um penedo, de chão térreo, com uma espécie de reduzida lareira e uma enxerga, onde dormia.”
O Sr. Albano aposentou-se em 2002 e mantém o entusiasmo quando fala do HCRP. Descobrimos que, nessa altura, fruto da sua dedicação, recebeu voto de louvor, que muito o sensibilizou.
[1] Decreto n.º 36:450 de 2 de Agosto de 1947, Diário do Governo, I Série, N.º 177.
Texto baseado em testemunho oral, em 2022. Validado pelo entrevistado. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge