Ana, uma vida no hospital
Ana nasceu em Monção – Viana do Castelo, em 1935. Vivia com a mãe numa casa sem casa de banho, e sem água canalizada. Não conheceu o pai, que havia falecido com lepra. A mãe nunca apresentou sintomas.
Ana começou a ter sintomas aos 12 anos. Foi rasteada em agosto de 1949, e na altura apresentava já lesões, alopecia nas sobrancelhas, lepromas nos malares e infiltrações nos supraciliares, manchas nas nádegas e lepromas nos braços, úlceras nas mãos, no cotovelo e nas pernas e lepromas gigantes nos joelhos. Realizados os testes, o diagnóstico confirmou o tipo – lepra lepromatosa, a forma mais disseminada da doença de Hansen.
Passou a ser acompanhada em casa e recebia drageias de sulfona (Diasona), enviadas por intermédio do subdelegado de Saúde de Monção.
Em julho de 1950, os resultados dos exames clínicos mostravam uma pequena regressão, mas os exames laboratoriais revelavam bacilos no muco e pele, e por isso o seu quadro e tipo de lepra acabou por motivar o internamento.
No dia 25 de fevereiro de 1952 foi transportada de ambulância de casa até ao Hospital. Foi assim uma das 20 pacientes internadas do distrito de Viana do Castelo até dezembro de 1952.
Ana ficou internada no 1º piso do Hospital e com apenas 16 anos, era natural sentir-se só e assustada. O estado avançado da doença requereu um conjunto alargado de cuidados e por isso manteve-se no edifício hospitalar vários anos. A vista da janela era bonita. Jardins esculpidos de buxo e flores e um longo laranjal.
Em 1956, a ficha de revisões registava que Ana tinha madarose total, pirâmide nasal levemente colapsada, máculas na face, nos membros superiores, infiltrações nas orelhas, hipoestesias no bordo cubital e máculas e lesões duras nas pernas. Nos anos seguintes, foram surgindo também úlceras, passando a ser recorrentes queixas de emagrecimento, cefaleias e náuseas. Paralelamente, iniciou tratamentos para fibropapilomas na face e membros.
Quase quatro anos após a entrada no hospital, as baciloscopias de Ana passaram a ser negativas. A relativa estabilização do seu estado, permitiu que entre 1959 e 1962 obtivesse autorização para gozar várias licenças de 30 dias, e ir a casa.
Ana cresceu e tornou-se adulta no Hospital, ali conheceu Joaquim, igualmente internado no Hospital. Acabaram por casar e em 1977 já residiam numa casa do Núcleo Familiar. Nunca tiveram filhos.
A falta de pessoal no Hospital, e a iniciativa de desenvolver a ergoterapia permitiu que, reunidas algumas condições, vários internados pudessem prestar serviço remunerado internamente. Ana e Joaquim surgem por isso nas escalas do sector de pensos do Hospital. Joaquim chegou mesmo a ser ajudante de enfermagem.
Integrados nesta comunidade, participavam nas celebrações religiosas e nas demais atividades de ludoterapia que o Serviço Social promovia.
O estado de saúde de ambos ia sendo acompanhado. Os registos clínicos de Ana revelavam a cicatrização gradual das úlceras, mas registavam ainda cefaleias, emagrecimento, obstrução nasal e rouquidão, episódios de febre e vestígios acentuados de albumina na urina, que indiciaram o comprometimento visceral, em especial hepáticas e renais. Do tratamento, além da sulfonoterapia, foram sendo incluídos ajustamentos na dieta (aumento do leite e da carna de vaca por exemplo), sendo possível acompanhar a evolução clínica ainda no ano de 1980 em que o estudo histológico de amostra cutânea indicava problemas como hiperqueratose, papilomatose, queratoacontoma.
Viveria no Hospital até ao seu falecimento, fazendo parte do grupo dos ex-doentes que permaneceram ali por opção após a reconversão para Centro de Medicina de Reabilitação.
(Baseado em documentos do Arquivo do HCRP. Pesquisa e redação por Cristina Nogueira – CulturAge)