Antero, as oficinas e mecânicas no Hospital

O Sr. Antero Melo iniciou funções no Serviço de Instalações e Equipamentos do Hospital Colónia Rovisco Pais (HCRP) em janeiro de 1966, tinha 23 anos. Na altura, era administrador o Dr. Viriato Namora.

 

O seu pai realizara anteriormente alguns serviços de mecânica para o hospital e levara-o ali para assistir cinema ao ar livre. O Sr. Antero recorda que “deveria ter uns 10 ou 12 anos quando fui ver um filme ao Hospital – “(…) ficámos dentro do carro a assistir, não era conveniente andar por entre os doentes.” Mais tarde, já como funcionário “fui várias buscar as bobines dos filmes à estação caminhos-de-ferro da Figueira da Foz. As bobines eram colocadas pelos eletricistas Américo Carvalheiro e Manuel Zananar na máquina de projeção, ainda hoje exposta no recinto do Hospital…numa espécie de museu. Mas acabaram por deixar de fazer estas sessões quando vieram as televisões para as salas dos diversos pavilhões, em 1972 ou 1973.”

 

O serviço onde foi trabalhar abrangia diversas áreas e nele trabalhavam carpinteiros, eletricistas, fogueiros, mecânicos, etc. As principais funções do Sr. Antero eram na área da mecânica, mas também realizava outro tipo de tarefas. As oficinas situavam-se junto ao edifício conhecido por Conventinho, onde funcionava a administração do HCRP. Ali, reparavam todos os automóveis do Hospital, bem como as motorizadas e vespas que eram usadas nas brigadas móveis, que, nessa altura, já percorriam quase todos os distritos, de norte a sul do país. 

 

Sobre o volume de trabalho, o Sr. Antero recorda: “chegamos e ter 10 ou 12 motas ao serviço” para que os enfermeiros, distribuídos por regiões, pudessem acompanhar os doentes externos nas suas casas – “davam a medicação, ministravam as injeções e faziam pensos. Cada um deles faziam cerca de 160/190 km, com a mota num raio de 70 Km, por dia. No início, iam com motas, mas depois arranjaram-se vespas e já iam mais confiantes pois não tinham corrente, e tinham um pneu suplente. De quinze em quinze dias, os enfermeiros regressavam ao Hospital, altura em que nós fazíamos a revisão das motas ou vespas e eles se abasteciam de algum material ou medicamentos necessários.” 

 

Os automóveis eram utilizados pelo diretor e administrador e pelas diversas Brigadas Móveis existentes. Como descreveu o entrevistado: “Havia uma Brigada de Serviço Social, composta por assistentes sociais do Hospital que saiam para visitar doentes externos ou as suas famílias, a quem eram facultados apoios, assim como para transportar os doentes que saiam em licença, ou buscá-los quando era altura e regressar. Depois havia a Brigada Médica, composta por um médico, um enfermeiro e um preparador do laboratório. Ao início as carrinhas tinham umas caixas de material própria, mas depois passaram a ser três carrinhas mercedes sem estruturas especiais. Davam a volta ao país e saiam quase sempre nas primeiras segundas-feiras do mês. Às vezes saiam duas ou três carrinhas no mesmo dia, percorrendo as regiões previamente determinadas, em giros que podiam ocorrer de três em três meses. Saíam com frequência para a zona de Pombal, onde havia muitos doentes…E por vezes circulavam em zonas onde nunca tinha ido um carro!”

 

Mais tarde, havia também uma ambulância que foi oferecida pela Associação de Doentes de Hansen e um mini autocarro para transporte de crianças do Preventório para as Escolas de Cantanhede e da Figueira da Foz. 

 

Construído para ser autossustentável e para possibilitar uma reabilitação dos doentes, também através da ergoterapia, o HCRP possuía oficinas para os doentes. Sobre este aspeto o Sr. Antero recorda que “(…) ao lado das oficinas onde ele trabalhava, um pouco mais a baixo, à esquerda, na linha do Asilo Santa Luzia, havia grandes árvores e uma mata e era ali que se situavam grandes barracões com as oficinas dos doentes. Entre os doentes haviam, calceteiros, canalizadores, carpinteiros, eletricistas, jardineiros, sapateiros… Os doentes que estavam nos pavilhões a trabalhar eram ajudantes dos enfermeiros, mas também ajudavam na agropecuária, concretamente nas pocilgas. As oficinas dos doentes estavam bem arranjadas e as instalações eram muito boas. Até havia um salão de barbeiro com uma cadeira de pedal! Eles tinham tudo o que necessitavam, o mal… era, que tinham era a doença!” 

 

Quando o Sr. Antero foi trabalhar para o hospital ainda haviam cerca de 800 doentes. Destes, como referiu: “Haviam muitos que gostavam de lá estar. Mas havia outros que quando foram para o Hospital eram novos e deixaram a família, e os filhos…esses já eram mais revoltados. Por vezes, bebiam ou brigavam entre eles e algumas vezes foi mesmo necessário chamar a GNR para controlar a situação.”

 

O 25 Abril de 1974 acabou por alterar o estado das coisas, e, a longo prazo, sentiram-se as modificações no Hospital Colónia Rovisco Pais. No período pós-revolução registaram-se alguns episódios, que o Sr. Antero partilhou: “No HCRP não se passava nada de especial porque eles tinham tudo o que precisavam… mas havia um ou outro doente que era mais reivindicativo e como tinha ocorrido a revolução também queriam manifestar-se. Um tempo depois, os doentes fecharam os portões e só deixavam entrar alguns funcionários. Primeiro, deixaram entraram os da cozinha, porque eles tinham que comer… Depois os enfermeiros porque tinham que fazer os pensos e tratar deles… Eu também entrei, porque precisavam de nós para arranjar as suas casinhas.” E neste mesmo sentido, o Sr. Antero acrescentou ainda: “aquilo era uma espécie de aldeia, mas das boas! Aos sábados e domingos tinha som na rua para animar… As casinhas tinham fogão a lenha e eram muito arranjadinhas… Era o que havia de bom na altura, e muitos deles não teriam aquelas condições em suas casas.” 

 

Segundo, o Sr. Antero, as razões destas iniciativas no pós-revolução prendiam-se com o facto de “(…) eles passarem a sentir que tinham liberdade, e como até ali tinham que obedecer certas regras, quiseram marcar a sua posição. Neste período, o MFA da Figueira da Foz ainda se deslocou ao Hospital algumas vezes, mas depois acabaram por deixar de ir…”

 

Na tentativa de perceber o impacto desta conjuntura política no Hospital, o Sr. Antero esclareceu ainda: “Não quer dizer que os soldados curassem os doentes, mas daí em diante já foi ficando tudo diferente e até deixaram de se fazer as brigadas e, mais tarde, a enfermagem domiciliária. Por outro lado, como passou a haver forma de os tratar sem internamentos longos, muitos doentes acabaram por ter alta. Ainda assim, alguns doentes quiseram ficar por razões pessoais e familiares. Outros, inclusive, alguns até dos mais “reivindicativos”, saíram, mas regressaram pouco tempo depois porque não se deram bem lá fora… Como eles diziam “isto era a casa deles.”

 

Em 1977 o Estado encetou medidas para uma efetiva descentralização na assistência à doença de Hansen, como forma de otimizar e racionalizar recursos e custos. A vigilância de primeira linha destes doentes passou a ser assegurada pelos Centros de Saúde, cuja criação e desenvolvimento decorreu da reforma do sistema de saúde português de 1971. 

O Sr. Antero recorda que “em 1976 e 1977 o diretor Dr. Américo Barbosa, e elementos do serviço social, um enfermeiro e um motorista percorriam os Centros e Saúde de norte a sul para “passar o testemunho” e capacitar as equipas dos mesmos, transmitindo as normas necessárias para o acompanhamento dos doentes de Hansen. Os Centros de Saúde recebiam os medicamentos feitos no Hospital, consoante o pedido que era realizado, e reportavam algum caso novo ou que necessitasse de assistência especial ao Hospital.”

 

Sobre o que mais gostava no trabalho no Hospital Colónia Rovisco Pais, onde trabalhou até 2002, o Sr. Antero disse: “Tudo o que fazia. Fazia com gosto.” 

 

Nas suas memórias surgem ainda momentos com o Administrador Dr. Pedroso de Lima, que segundo ele “(…) implantou no Hospital um 25 de Abril antes da revolução” ao fomentar festas com funcionários dos diversos departamentos do Hospital e doentes, convívios e “visitas como aquela em que foram à Serra da Estrela, e almoçaram no Centro de Recuperação de Espariz.” 

 

Da sua Administração recorda, com detalhe, o episódio que deu origem a que fosse viver com a sua esposa para o Bairro dos Funcionários, até ali reservado a médicos e enfermeiros. Num dia fez o pedido e no outro obteve autorização, da seguinte forma: “Naquele dia havia reunião do Conselho de Administração com o Sr. Professor Bissaya Barreto, no fim da mesma seguiam ambos no carro de regresso a Coimbra quando, junto às oficinas, buzinaram e o Dr. Pedroso Lima chamou-me e disse: – O Senhor Professor já deliberou, portanto quando quiser mudar as coisas já pode mudar.” E assim, como refere o Sr. Antero foram para aquele bairro que “era um jardim com bonitas sebes, limpinho e arranjadinho…mas que hoje está ao abandono!”

 

 

(Texto baseado em testemunho oral, em 2020, validado pelo entrevistado. 

Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge)