As memórias do Enf. Paulo Anacleto

Paulo Anacleto é enfermeiro no Hospital Sobral Cid. As suas memórias de infância são todas no bairro dos funcionários do Hospital Colónia Rovisco Pais, onde residiu até aos 21 anos.  

 

O seu pai, Manuel de Oliveira Anacleto, natural da Mealhada e nascido em 1931, foi enfermeiro naquele hospital entre 1956 e 1987. Paulo Anacleto contou que o pai fez o primeiro Curso Geral de Enfermagem com três anos na Escola de Enfermagem Dr. Ângelo da Fonseca em Coimbra e de seguida “trabalhou no consultório médico do Dr. Santos, o João Semana da Mealhada. Andavam os dois de bicicleta por todo o concelho, e até pelos limítrofes, designadamente em Anadia e faziam de tudo, até partos. A sua grande oportunidade surgiu quando ainda era solteiro: foi vir para o Hospital Colónia Rovisco Pais.”

 

Recuando no tempo, o Enf. Paulo Anacleto admitiu que “aquele convívio desde que nasci até que saí de lá marcou-me profundamente naquilo que eu hoje sou também.” E foi descrevendo o ambiente que ali viveu e partilhando algumas das suas recordações. “No bairro residiam enfermeiros, funcionários administrativos, o padre, o administrador do hospital, os médicos e enfermeiras que tinham ali um lar. O sentido comunitário era grande, bem como o sentimento de partilha, desde a conversa, até ao sal ou salsa.” E, hoje reconhece que: “Nós fomos uns privilegiados para o contexto nacional, quem é que tinha telefone naquele tempo, ou água canalizada? E a preços módicos. Nós e os doentes!”

 

Recorda-se que as irmãs, do Conventinho do Hospital “passavam ali no bairro e nos levavam pela mão para a missa e catequese na Tocha. Eram dois quilómetros. E dos convívios: “lembro-me bem das festas no Natal e na Páscoa, inclusivamente com os filhos dos doentes que estavam no Preventório, brincávamos juntos! E das viagens que o Hospital organizava à quinta que tinham em Espariz, em que iam os funcionários e os filhos nos transportes do Hospital. Era um convívio fantástico. Se houve local onde não havia divisão de classes era ali, no bairro.”

 

Mais tarde passámos a conviver com os doentes, pois muitos dos que saíram passaram a ser vizinhos. “Os meus primeiros cães fui buscá-los a casa do Sr. Cavaco e da D.ª Leónia que continuaram a viver no núcleo familiar do Hospital”. No Bairro do Camelo, junto ao bairro onde vivia residiam muitos funcionários e ex doentes do Hospital. Residia ali um casal que conheceu bem: “o Sr. Professor Marques do ensino primário. Depois de sair do Hospital abriu uma salinha privada que funcionava como escola de adultos onde preparava para admissão ao exame da quarta classe. A minha mãe fez lá a quarta classe já com cerca de quarenta anos. Ele tinha sido doente, mas as pessoas não tinham problemas de ir para a Escola. E a minha primeira visualização de uma televisão, foi na casa dele. Eu ia com a minha mãe e a minha irmã, atravessávamos o pinhal com uma lanterna para ver o telejornal na televisão do Sr. Professor Marques e da esposa, a D.ª Emília. As pessoas foram reconstruindo a sua vida, e penso que isso é o mais importante!”

 

Retém muitos momentos das idas ao Hospital pela mão do pai. Ele dizia-me “Não toques em nada, não coloques as mãos no corrimão. Ele abria as portas com os pés ou com o cotovelo.” Uma vez, quando teria treze ou catorze anos foi ao bloco operatório: “aqueles aparelhos, a gente ouvia falar, mas era uma novidade. Era quase como hoje um miúdo ir ao planetário…”

 

E, sendo certo que após o 25 de Abril havia doentes que andavam fora, de bicicleta, pelo que os miúdos começaram a vê-los pela primeira vez. Ir lá dentro era bem diferente, como referiu o Enf. Paulo Anacleto: “recordo-me como se fosse hoje, ficou-me indelevelmente marcado. O meu pai levou-me à enfermaria e mostrou-me um doente, apenas do corredor, dizendo-me: “aquele é cego, não tem orelhas, não tem boca, e tinha uma sonda, estava completamente desfigurado… vê-los deitados, completamente desfigurados, com feridas medonhas, não tanto o cheiro, o que me chocou foi a sua aparência. Existiam casos muito avançados no Hospital. Muitos amputados, muitas cadeiras de rodas. E recordo-me do meu pai dizer que fez os primeiros transplantes de pele.”

Falou-nos ainda do Doutor Bissaya Barreto: “no bloco operatório, quando ele operava, só havia dois enfermeiros que lá entravam, o Enf. Bernardes e depois passou a ser o meu pai.” E havia uma história que o pai lhe contava de que nunca se esqueceu: “O Doutor Bissaya Barreto quando ia fazia a ronda pelas enfermarias com o meu pai e uma irmã, um dia viu um lençol com uma mancha negra e questionou se estava esterilizado. A irmã disse-lhe que sim e ele disse-lhe: Ò irmã também come porcaria se estiver esterilizada? Ele queria todo o rigor do ponto de vista da esterilização…” 

 

Sobre o Enf. Manuel de Oliveira Anacleto, seu pai, sublinhou a sua abnegação, contando que: “O que mais me marca era a sua entrega total. A minha mãe lembra-se que o meu pai quando recebia o ordenado guardava o dinheiro na bata e esquecia-se dele lá. Era uma permanente e total dádiva daquilo que sabia aos outros. Ele perdia-se no Hospital, não ligava às horas de saída. Mas isto, todos os dias. Ao domingo ia para o Hospital falar com os doentes. Nós já sabíamos onde é que ele estava. Enquanto que os outros iam para o café, o meu pai ia para junto dos doentes. Ia muito para o núcleo familiar onde estavam doentes. Ele, não tinha medo do contágio e perdia-se na conversa. Para ele, aquilo era tudo. Assumiu a plenitude daquilo tudo e ficava feliz por falar com os doentes. E se alguém precisasse de alguma coisa no exterior, o meu pai nunca levou um tostão a quem quer que fosse. E mesmo quando foi massagista da União Desportiva da Tocha nunca quis nada. Reformou-se foi para Mealhada, esteve no Hóquei, nunca levou um cêntimo. Não tinha interesse absolutamente nenhum em contrapartida financeira para o efeito. Tal como na sua profissão.”

 

O Enf. Paulo Anacleto, prosseguiu, partilhando “O meu pai aposentou-se com 55 anos. Mas manteve contacto permanente com os doentes e alguns iam visitá-lo à Mealhada e ligavam. E ele visitava os doentes que já viviam cá fora, de bicicleta.”

 

Texto baseado em testemunho oral, em 2022. Validado pelo entrevistado. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge