As memórias felizes de Rodrigo

Rodrigo*, a mãe e os irmãos chegaram à Tocha em março de 1964, ao final do dia. A viagem foi longa, e no caminho de sua casa para o Hospital, a Brigada tinha recolhido mais outro doente. 


Na altura, tinha cinco anos e do momento de chegada ao Preventório tem pequenas recordações. Lembra-se do barulho de crianças a rir como primeira memória desse novo mundo onde acabou por viver até à adolescência. Recorda-se também de tomar banho numa banheira, algo que nunca tinha visto, e de permanecer (em quarentena) durante algum tempo com os irmãos numa sala, isolado das restantes crianças.

 

Quando se invoca a memória sobre o Preventório, descreve tão detalhadamente os espaços internos quanto os circundantes, no exterior. Nesta visita guiada narrativa informa que o edifício com dois pisos tinha uma ala para meninas e outra para os meninos, que no rés-do-chão se situava o refeitório, no primeiro andar, a escola, a sala de leitura, a capela, a enfermaria. Em ambos os pisos havia camaratas e um quarto para a vigilante. Em cada uma das camaratas havia uma zona de dormir com seis camas e a zona do quarto de banho, totalmente forrada a azulejos e mosaicos, na qual existiam duas banheiras, três chuveiros e quatro sanitas, estes em compartimentos separados. Nas varandas havia aquecedores e azulejos com animais muito bonitos. 


No exterior, recorda-se que havia baloiços, jardim com muitos canteiros, campos cobertos de flores. Era muito bonito, especialmente na Páscoa. “Se não estávamos no paraíso estávamos lá perto”. Havia jardineiros e também uma estufa. Numa zona próxima, na parte traseira do Preventório, recorda-se de visitar um parque verde com passadiços, fontes, pequenas valas de água e uma roda, onde viu diversos animais (vaca, ovelhas, raposa) e que julga ter sido uma espécie de pequena quinta pedagógica. 

 

No dia-a-dia havia rotinas, horários e regras. Eram acompanhados por vigilantes que vestiam bata branca e avental branco. Recorda-se com carinho da Maria Albertina, que o acompanhou durante mais tempo, da Maria Arminda, da Olívia, da Eugénia, que era empregada de limpeza e da Fanny que ia apenas nas férias e iniciava os dias das crianças com cantigas na varanda. 

 

Não havia uniforme. Os rapazes vestiam calções azuis e usavam sandálias que o sapateiro do Hospital consertava. Só em 1970 ou 1971 passou a usar calças. Também se recorda, já mais crescido, que um dia a diretora, D. Maria Luísa, foi com eles a Coimbra e comprou um fato de bombazine, com calça e jaqueta da Miura, para cada um. O dele era vermelho, e recorda-se como se sentiu “janota”.

 

Durante o dia estavam na Escola e, no recreio saltavam à corda, jogavam ao eixo.
Quando era mais crescido também participava em algumas tarefas domésticas. Cada um fazia a sua cama e na sua ala, os rapazes é que limpavam e enceravam o chão, fazendo-o por vezes na Creche também. 


Aos domingos de manhã ouviam rádio, num daqueles aparelhos antigos e grandes. Por volta de 1968 ou 1969, passou a existir uma televisão no salão e podiam vê-la durante a semana, a seguir ao jantar, e aos domingos. 

 

À noite, deitavam-se às 21:30. Havia uma ronda na qual as vigilantes ou a diretora se certificavam, através da vidraça das portas para o corredor, que todos estavam bem e a dormir. 


Refere: “nunca passei frio, nem tive fome, tinha assistência médica e de enfermagem permanente”. Quando ficava doente, o que acontecia com alguma regularidade devido às otites, havia sempre uma vigilante que cuidava de nós: media a febre, colocava gotas. Na verdade, diz: “nunca estive sozinho.”

 

A alimentação era boa, confecionada pela cozinheira Emília, que era também uma excelente doceira. Ao pequeno-almoço bebiam leite com café e pão fresco com manteiga. As refeições principais eram compostas sempre por sopa e prato de carne ou peixe. 

Havia ementas que não eram tão apreciadas, como a açorda de carne, o peixe frito com arroz de cenoura, e o peixe cozido com legumes. “Tinham que comer tudo, mas quando era do agrado, podiam repetir”. Havia ementas especiais em alguns dias e nas épocas festivas. Recorda-se do frango assado com batatas fritas ou do cozido à portuguesa aos domingos, ou do bife de vaca com ovo e batatas fritas no dia de Páscoa. 

 

Na época natalícia, as crianças iam ao musgo e faziam o presépio na sacristia. A árvore de natal era um pinheiro manso transportado por vários homens. Na noite de Natal, os mais crescidos iam à missa do galo, depois bebiam cacau quente e comiam rabanadas, enquanto a árvore se iluminava com luzes de todas as cores. Os presentes eram abertos na festa que se realizava a 5 de janeiro e cada criança recebia o seu presente. Recorda-se de alguns dos brinquedos que recebera: uma corneta e um barco, um carrinho vermelho de fricção e uma bola de couro. 

 

No verão iam quinze dias para a Colónia Balnear da Figueira da Foz e no último ano ainda foram para a Colónia de Férias Ar e Sol, em Vila Pouca da Beira. 

 

Por vezes, eram organizados passeios e visitas. Recorda-se muito bem dos passeios que fizeram ao jardim zoológico, ao castelo de Leiria, às praias da Tocha e Buarcos, e mais tarde a um museu que tinha as roupas de batizado do Prof. Bissaya Barreto, em Coimbra.
Sobre o Prof. Bissaya Barreto refere: “tive o prazer de o ver uma ou duas vezes, era um senhor com cerca de 1,62m”. Rodrigo recorda com orgulho “que uma vez houve lá uma festa com estudantes de medicina da Universidade de Coimbra e fui escolhido para lhes recitar poemas”.

 

Durante o tempo em que esteve no Preventório, Rodrigo e os irmãos encontravam-se com a mãe na portaria do Hospital, sempre que ela fazia o pedido de visita, e numa fase posterior também viam o pai.  Inicialmente via-os através de um vidro, mas mais tarde a visita já não era feita dessa forma e não havia aquela separação. Eram ocasiões especiais, por isso, nesses dias vestiam roupa mais bonita, a D. Maria Luísa colocava-lhes água-de-colónia. Recorda que “íamos todos pipocas”.

 

Um dos aspetos que Rodrigo mais valoriza nestas memórias é a instrução que teve, bem como a oportunidade de ir mais além, nomeadamente, de lhe terem sido dadas condições para prosseguirem estudos em Cantanhede e depois na Figueira da Foz. Por isso, este capítulo das suas memórias é bastante recheado de recordações.

 

No ensino pré-primário tinha uma educadora chamada Maria Casilhas com quem faziam desenhos e picotagens.

 

No ensino primário teve duas professoras, uma delas chamada Maria Luísa. A Escola situava-se no 1º andar do Preventório, na ala dos rapazes, e era mista. Quando se entrava cada fila correspondia a um ano, da 1ª à 4ª classe. Havia dois quadros, um em ardósia e outro era uma espécie de cavalete verde, bem como um globo e um crucifixo e dois retratos, um de Salazar e outro do Almirante Américo Tomás. Nas carteiras, havia um tinteiro de porcelana branco, sempre com tinta e num compartimento da mesa podiam guardar os livros. Recorda-se que usava lousa e pena até à 3ª classe e só na 4ª classe passou a usar caneta. 


Hoje ainda valoriza o conforto de não ter que sair ou andar ao frio para ir à Escola e ter livros oferecidos.

 

Antes de fazer o exame da 4ª classe, a professora conseguiu que fossem assistir a duas aulas na Escola Conde de Ferreira, em Cantanhede. Nessa ocasião, “a professora de lá comentou com a sua professora que os meninos do Preventório estavam um pouco mais adiantados na matéria”. Fez o exame em 1970, e no 5º ano passavam a ter aulas no ciclo de Cantanhede. Ali, ao almoço, tinham senhas diferentes e na cantina passavam à frente de todos. Lembra-se que, nesta nova fase, sentiu alguma descriminação por parte dos outros colegas, pelo facto de ser do Preventório. Descreve também algumas dificuldades em corresponder nas ilustrações dos trabalhos que lhes pediam, por não ter nesse âmbito os mesmos meios que os outros meninos tinham. Tentava ultrapassar estas questões aplicando-se e obtendo melhores classificações. No Preventório, faziam os trabalhos de casa na sala de leitura e eram auxiliados por explicadoras. 

 

Posteriormente, frequentou o ciclo e ainda o Liceu na Figueira da Foz. Todos os dias iam numa carrinha que o administrador, Dr. Pedrosa de Lima, havia arranjado para o efeito. Nessa ocasião tinham aulas apenas de manhã. Às quartas-feiras tinham ginástica, e recorda-se que o fato era todo branco. 

O percurso seguido acabou por ser um pouco diferente do que acontecia anteriormente às crianças naquela instituição. No Preventório as meninas ficavam até aos 18 anos e os meninos saíam aos 12 anos para a Escola Profissional de Semide, onde aprendiam agricultura e outros ofícios como tipógrafo. Mas como não tinham muito boa impressão deste lugar, Rodrigo sentiu que acabou por ter sorte também neste ponto. Quando saiu do Preventório, aos 14 anos só havia dezoito rapazes, dos quarenta iniciais e apenas no rés-do-chão ainda havia crianças. 

 

Em 1973,  saiu do Preventório e foi instalado com outros cinco rapazes no bairro de funcionários do Hospital, onde tinham uma empregada que residia com eles, assegurando tarefas de orientação e limpeza da casa. Ele e os colegas continuavam a poder estudar e, Rodrigo ainda frequentou o 1º ano do liceu. “Até aí não se preocupavam com nada. Eram unidos e não sabiam dizer um palavrão.” 

No último Natal em que esteve na Tocha, o administrador, Dr. Pedrosa de Lima, levou os rapazes que viviam no bairro à Capela do Hospital e tiveram oportunidade de ver como eram os doentes. Rodrigo recorda-se de como isso o tocou profundamente. Ao recordar os doentes todos desfigurados afirma que “todos deviam ser confrontados com a visão destas doenças para saberem como realmente era”. Em torno desta reflexão disse ainda: “acredito que se não fossem tomadas medidas a lepra nunca mais acabava”. 

 

Após o 25 de Abril de 1974, deram autorização à mãe para sair do hospital e Rodrigo regressou com os pais e irmãos a casa. Refere que foi “um balde de água fria” pois não tinham água canalizada, eletricidade ou casa de banho. “Saiu de um lado onde tinha tudo para outro onde não tinha condições. Nem colchão tinham para se deitar, na fase inicial.” 

 

Do Preventório, levou muitas recordações e uma mala com roupa interior, pijamas e toalhas com as iniciais do hospital, que cada filho recebeu à despedida.

 

Sublinha que “o Mundo de hoje não era o daquela altura”, que os “pais não podiam dar-me algumas coisas que lá tive” e que “não posso esquecer quem fez de mim uma pessoa de bem”.

 

Hoje, quase cinco décadas desde que saiu do Preventório, ao fazer o balanço do que foram aqueles tempos, refere ainda que embora existissem castigos, guarda mais recordações bonitas daquele lugar – “Era uma criança feliz. Esta é a minha verdade, que corresponde ao que senti e ainda sinto.”

 

*nome fictício.
(Texto baseado em testemunho oral, em 2020, validado pela entrevistada. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge)