As visitas da Enfermeira Nídia
A Enf.ª Nídia Salgueiro formou-se na Escola de Enfermagem Dr. Ângelo da Fonseca. Exerceu a sua atividade profissional nos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC), onde foi responsável por vários serviços entre eles o Serviço de Dermatologia e Venerologia e de Clínica Médica e na Escola de Enfermagem Dr. Ângelo da Fonseca (EEAF), onde foi monitora, professora, coordenadora de cursos e membro da Comissão Instaladora e de Gestão (1977-1983).
A sua vasta e diversificada experiência profissional foi um dos aspetos importantes para a recolha deste testemunho, pois para além de facilitar o enquadramento da assistência neste domínio na região centro, permitiu averiguar ecos da imagem externa do antigo Hospital Colónia Rovisco Pais (HCRP) construída através das visitas de estudo efectuadas por enfermeiros portugueses e franceses.
A Enf.ª Nídia visitou o Hospital (HCRP), pelo menos em três momentos distintos do seu funcionamento. A primeira vez, em 1955, quando era aluna finalista do Curso de Enfermagem Geral da Escola de Enfermagem Dr. Ângelo da Fonseca, em Coimbra. A segunda vez, em 1972, com os alunos do Curso de Enfermagem Geral, como professora daquela Escola. A terceira, nos anos 1990 quando acompanhava estudantes e professores de escolas de enfermagem francesas (Écoles Cadres).
Na visita de 1955, o HCRP estava no auge do seu funcionamento. A identificação sistemática e isolamento social dos doentes de Hansen contagiantes era uma das medidas previstas na legislação portuguesa. A luta contra a lepra assentava no diagnóstico precoce, como forma de controlar as lesões e a evolução da doença, e na prevenção do contágio como forma de preservar a saúde coletiva. Nesta visita ao HCRP, Nídia, os colegas de curso e os monitores da EEAF foram acompanhados por funcionários do Hospital que iam transmitindo informações relativas às atividades e ao funcionamento de cada sector. Iniciaram pela zona reservada aos doentes, percorrendo todos os edifícios, mas não tiveram autorização para entrar no Creche e Preventório por terem estado previamente na zona hospitalar, mas foi-lhes explicado o seu funcionamento.
Dessa visita, a Enf.ª Nídia recorda-se de explicarem, perante a existência da prisão e ao passarem em frente desta“(…) que havia regras, e que o controlo era apertado. Os doentes não podiam sair se estivessem na fase contagiosa. Eram sobretudo os homens que fugiam…e não as mulheres, para verem os filhos”.
A Enf.ª Nídia preserva ainda na sua memória imagens dos doentes – “com deformações no rosto e nas mãos, com úlceras nas pernas e dificuldade de mobilidade” e, lesões em várias outras zonas do corpo.
Recorda-se que era “percetível a sensação de comunidade” e “(…) marcou-me as casinhas dos doentes, e a coexistência de doentes do sexo masculino e feminino, ou seja, de casais de doentes. Isso, para si foi um aspeto muito interessante… e, acrescenta, nalguns países possivelmente seriam esterilizados… Gostei de ver uma família, de ver os doentes a cultivar… A hortinha em cada casa impressionou-me muito. Foi algo que retive e que perdurou. Nunca fui a favor de separação por género nos hospitais, na Escola de Enfermagem, nos lares da Escola. Talvez, este sentimento se devesse ao facto, de num tempo em que a instrução primária e liceal ocorria em estabelecimentos separados por sexo, ter feito a 4ª classe com o Professor e os rapazes. O Professor e a Professora eram esposos. Com o nascimento do primeiro filho e alguns problemas de saúde, as alunas (duas) passámos no início do ano escolar para o marido, julgo que para aliviar a esposa, e, sem carácter oficial. Para mim, foi uma ótima experiência. O Professor era duma grande exigência, estimulava a criatividade dos seus alunos e criava-lhes o gosto pela jardinagem. Também foi determinante o facto de sempre ter lidado com rapazes, devido à empresa dos meus pais e, aos contactos com os trabalhadores agrícolas, que sempre me respeitaram muito. Daí, quando ingressei na docência (1-1-1968), tomando a coordenação do curso, tenha pugnado por atividades mistas. Os alunos, nas suas comemorações de curso, sempre me convidam e realçam este facto. Também propor turmas mistas na Escola e na natação, o que foi concedido. Como membro da Comissão Instaladora da Escola de Enfermagem pugnei pela transformação do Lar-Sede em Lar misto. Foi um processo difícil, que exigiu muita diplomacia e apelo “à corda sensível” dos rapazes, para vencer as suas resistências. Estes, ao ficar vago o Lar Alexandre Herculano, depois da extinção do Curso de Auxiliares de Enfermagem, tomaram-no de assalto e não abriam mão dele. Esta experiência de lar misto foi muito importante para o sucesso de Residência Mista nas novas instalações da EEAF.”
No HCRP, “aquelas casinhas tinham canteiros de flores, bem como nos espaços exteriores dos edifícios, criando beleza e um ambiente agradável e saudável… Fui criada no meio da natureza, como uma gazela à solta… Encantou-me.” No edifício hospitalar, recorda-se bem do vai vem de doentes à entrada do edifício para fazer tratamentos, bem como das enfermarias.
Estas memórias transportaram-na para um outro momento, quando iniciou a sua atividade profissional no serviço de Dermatologia dos HUC (26-04-1956). Em que “veio à consulta de Dermatologia, uma senhora, cujas lesões levaram a suspeitar de lepra, tendo sido reencaminhada para o HCRP”. Recordou que “(…) os tratamentos que existiam nessa altura, com a sulfonoterapia, tinham muitos efeitos secundários, provocando muitas alergias. Não havia nada, nem terapêutica eficaz… Não sei o que era melhor se eram as doenças, se eram aqueles efeitos… Felizmente depois veio a penicilina… e tudo evoluiu”.
A penicilina começou a ser introduzida paulatinamente em alguns países a partir de 1942, embora inicialmente fosse muito dispendiosa e difícil a sua aquisição.
A Enf.ª Nídia recorda-se que “no serviço de Clínica Médica, no final da década 1950 ainda havia dificuldade em obter e efetuar o tratamento com a penicilina, a então injeção intramuscular conhecida por Penadur 633, que iam buscar à estação velha de Coimbra.”
A solução terapêutica para a lepra apenas surgiu em 1977 com introdução da Rifampicina, sendo eficaz posteriormente combinada com a Dapsona e a Clofazimina. Mas apenas em 1981 este tratamento combinado de poliquimioterapia passou a ser recomendado pela OMS e incluído em programas de controlo da então designada Doença de Hansen.
No âmbito da “higiene social”, de que era regente o Professor Bissaya Barreto e da “administração e organização hospitalar”, do seu Curso de Enfermagem Complementar, secções de Ensino e Administração (CEC-1956/1957), a primeira visita ao HCRP, cuja lembrança perdurou, foi retomada à luz dos novos conhecimentos, o permitiu à Enf.ª Nídia reforçar a “impressão muitíssimo positiva daquela unidade hospitalar”. E, por isso disse: “O Hospital Colónia Rovisco Pais era modelar, de conceção pavilhonar, com separações bem estruturadas. Assentava numa conceção de instituição autossustentável. Os doentes que podiam residiam numa casa “sua”. Os doentes em situação de maior gravidade estavam internados nas enfermarias do Hospital ou nos Asilos, a fim de receberem cuidados adequados ao seu estado.”
“E prosseguiu dizendo: aquela instituição “funcionava em rede, muito organizada, enquadrando-se no protótipo e conceção da obra do Professor Bissaya Barreto: modelar em termos de estrutura e de equipamentos, envolta pela natureza, com bonitos jardins, dispondo de um meio de divulgação e ensino – a Revista Rovisco Pais… Porque sem conhecimentos não há avanços, tal como concebeu para a tuberculose (1932-1942).”
Em 1972, quando a Enf.ª Nídia regressou ao HCRP com os seus alunos, já não havia tantos doentes internados, mas recorda-se que existia um serviço de “Enfermagem domiciliário e pós-internamento, em que os enfermeiros percorriam a região em lambreta, levando o medicamento aos doente seguidos em ambulatório e assistindo à respetiva toma.”
A Enf.ª Nídia prosseguiu confidenciando: “Devo dizer que nestas visitas não tomei consciência da amplitude desta obra, cujas brigadas (com enfermeiros e assistentes sociais), iam do Minho ao Algarve, despistando a doença e as necessidades de carácter social e de sobrevivência.”
Mais tarde, já na década de 1990, a Enf.ª Nídia acompanhou grupos de enfermeiras/os de Escolas de Quadros, ao abrigo de protocolos de cooperação com a EEAF. O programa, incluía visitas ao Centro de Saúde de Mira ou ao Hospital da Figueira da Foz, passando pelo Hospital Rovisco Pais, na Tocha. Recorda-se que numa dessas visitas constataram a existência de ex-doentes de Hansen nas instalações do antigo HCRP, cuja permanência foi justificada por quem guiou a visita e, segundo reteve, assim: “(…) os doentes sacrificaram-se, cumprindo o isolamento social, deixando as suas comunidades, as suas famílias e casas, a favor do todo ou seja da sociedade. Esse facto justifica uma “dívida de gratidão” para com elas, e que o Estado garanta a continuidade do apoio que necessitarem, após a cura, nos casos em que se perderam os laços familiares e a idade, e/ou a sua debilidade, ou a preferência de ali continuarem, por considerarem ser a sua casa.”
Estes visitantes, na avaliação da visita, partilhavam com a Enf.ª Nídia a sua “admiração pela organização daquela unidade hospitalar, considerando-a modelar”. Como explicou: “embora fossem ver uma realidade que já não era a inicial, mas ainda era possível perceber o conceito original e ver as casinhas com alguns ex-doentes. Era bastante percetível que os ex-doentes consideravam aquelas casas como suas, assumindo ser aquele o seu mundo.”
No momento final desta partilha de memórias, a Enf.ª Nídia, de forte personalidade e convicções, construídas com base numa experiência de oito décadas de vida, que sustentam a sua visão abrangente do meio envolvente, solicitou que neste testemunho se incluísse também uma reflexão com a sua interpretação dos factos e numa dialética entre o passado e o presente.
E foi neste sentido, que afirmou: “Pelo que vivi e aprendi, reagi mal a uma reportagem que passou há tempos na televisão, em que uma senhora, que não percebi se era médica, admitindo que não fosse, em que nitidamente, pelos gestos e palavras incitava à exigência de indemnização de uma filha retirada da sua mãe e criada no Preventório do HCRP. Não dei conta que fosse bem explicada a razão dessa separação. Nenhuma mãe e/ou pai que tivessem passado pelo sofrimento causado pela lepra, pelo estigma desta doença, e se vissem desfigurados por esta doença, que ao ser-lhes explicado que os filhos dos leprosos não nasciam leprosos, mas o seriam sem medidas preventivas, como aquela, fossem contra a proteção de seus filhos, apesar do sofrimento causado pela separação. O poderem acompanhar o desenvolvimento das suas crianças, o saberem-nas bem cuidadas e com condições que não teriam nas suas próprias casas, rodeadas de beleza, de cor, como eram as obras dedicadas às crianças concebidas pelo Professor Bissaya Barreto, mitigava, certamente, o seu sofrimento. Para a mãe, o bem maior é sempre o do seu filho, com raríssimas exceções. Não me apercebi que fosse explicado àquela filha que tal medida foi a maior dádiva de amor a seu favor.”
Continuou, e fez um paralelismo com a tuberculose: “Ao longo do meu exercício profissional e, não só, soube de vários casos de crianças infetadas por avós e outros familiares. Alguns, dramáticos, nas rondas hospitalares, ocorridas no Serviço de Pediatria dos Hospitais da Universidade de Coimbra. Os últimos que tive conhecimento foi em 2015, numa entrevista que realizei a uma senhora de 95 anos que teve quatro filhos, tendo perdido uma menina (10 meses) e um menino (14 meses) infetados por tuberculose pelos avós paternos…Também no serviço de Clínica Médica dos HUC, em 1959, recebemos uma criança primo-infetado pelo pai… que acabou por ficar na enfermaria cerca de dois anos até ser adotada. Mas houve outros casos também com crianças… Era uma realidade com que nos deparávamos, na época…”
A Enf.ª Nídia disse ainda: “O que estamos a viver agora com o Coronavírus leva-nos a fazer um paralelismo com o isolamento social dos Hansenianos e com a aceitação das medidas de prevenção estabelecidas. O que se verificou então, verifica-se agora, e verificar-se-á até que haja terapêutica eficaz ou vacina. A diferença é que o espectro agora é mais alargado, e por isso muito mais difícil. Com a Lepra bastou o isolamento dos infetados e depois, a terapêutica… para se vencer o combate.”
Em jeito de resumo, a Enf.ª Nídia referiu: “o HCRP, foi concebido para detetar e travar a difusão do flagelo da lepra em Portugal, numa época em que não se dispunha de terapêutica específica, apostando na prevenção, até melhores dias. Cumpriu os seus objetivos. A sua conceção, organização e funcionamento, é paradigmática de uma obra da autoria de Bissaya Barreto. Saltam à vista os elementos que caracterizam as suas obras: conceção pavilhonar, em rede, implantação no seio da natureza, rodeada de jardins, que lhe dão beleza e cor, sol. Contendo, também uma parte agrícola para cumprir o desígnio de Instituição autossustentável. A parte hospitalar obedece à chancela Bissaya Barreto, desde os materiais de construção aos equipamentos. No pavilhão hospitalar lá está bem evidente a exposição ao sol. Como nos espaços dedicados às crianças. As regras, a disciplina, o rigor, respiravam-se.”
E acrescentou por último “pelas consultas bibliográficas que fui fazendo ao longo dos anos, o HCRP foi considerado pelos entendidos que a visitavam como uma leprosaria modelar.”
(Texto baseado em testemunho oral, em 2020, validado pela entrevistada. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge)