Carlos, o "menino Jesus"

 

A infância de Carlos Cruz está intimamente ligada ao Hospital Colónia Rovisco Pais (HCRP) na Tocha. As memórias daquele local – “um jardim autêntico”, como lhe chama, acompanharam-no toda a vida e viajaram com ele quando aos 19 anos foi viver para a Marinha Grande. Ao longo da vida foi ouvindo falar sobre o Hospital, e algumas vezes se cruzou com ex-doentes, que reconheceu de imediato pelo traços característicos da doença. Quando se proporcinava, “chegava à fala com essas pessoas e algumas vezes disse: olhe que eu nasci lá dentro!”

 

Nasceu em 1962 no HCRP e até aos quatro anos de idade esteve na Creche, junto ao Preventório. Dessa ocasião guarda duas fotografias: uma com a D. Maria Emília, assistente social e outra ao colo do pai. Daquele tempo, não se recorda de nada, apenas tem memórias de quando vivia numa casa junto à sebe do HCRP, quando os pais ali trabalhavam. Sempre soube que ambos estiveram internados no Hospital. Mas a nostalgia dos seus sessenta anos levou-o a tentar conhecer mais detalhes da história deles, e da sua, os quais partilha orgulhosamente connosco.

 

Ana, sua mãe, nasceu em 1939, vivia em Vila Verde de Oura (Vidago) e foi internada no HCRP quando tinha 12 anos. Na sua família não havia mais ninguém com a doença. Aos 17 anos teve alta e regressou à sua terra natal. Manteve correspondência com Manuel (natural de Vila da Feira), que continuou internado no Hospital, e quando este teve licença de 30 dias, aproveitaram para realizar o casamento na terra da noiva. Ana tinha então 22 anos e continuava a residir na sua terra natal, com alta hospitalar.

 

Quando a licença terminou, Manuel não regressou ao Hospital, por isso “a autoridade foi buscá-lo e levou-o para o posto de Chaves, onde a ambulância do HCRP o iria apanhar horas mais tarde.” Ana esperou pela âmbulancia e quando avistou o motorista disse-lhe: “ele vai e eu também tenho que ir, ele é meu marido, eu também tenho que ir!” O motorista argumentou que não a podia levar, mas Ana insistiu dizendo: “eu vou mas fico na portaria”. Por isso, “ele trouxe-a”. Já na portaria do Hospital, o vigilante telefonou para o Dr. Pedro, que era o diretor. Ele disse para a deixarem entrar, ficava aquela noite e pela manhã do dia seguinte falava com Ana. A mãe entrou foi para a parte das mulheres. O pai, como tinha desrespeitado as regras das licenças, foi para a “cadeia” durante vinte dias. No dia seguinte, Ana foi chamada ao diretor que recomendou que regressasse à sua terra, uma vez que tinha alta. Mas ela disse-lhe que não queria voltar e ele para a demover avisou-a: “Não queres ir, não vais, mas se tiverem filhos vamos ter que os levar para o Preventório pois não podem ficar em contacto com os doentes.” E assim foi, Ana ficou no Hospital, de livre vontade, para viver com o seu marido, que continuava internado. Os filhos nasceram e foram levados para a Creche – primeiro Carlos (1962), e depois Isabel (1964). Só os viam quando iam visitá-los ao locutório, junto à portaria.

 

Em 1966, tiveram alta e saíram todos do HCRP. A mãe de Carlos tinha 27 anos e estava grávida do irmão mais novo. Foram viver para uma casa arrendada no lugar dos Inácios, próximo do HCRP. Manuel, que “tinha aprendido a arte de pedreiro no HCRP, continuou, mas como funcionário”. Faleceu quando Carlos tinha 15 anos. A mãe, continuou a tomar comprimidos durante muito tempo, valorizava muito quando era bem acolhida pelas outras pessoas. Carlos conta-nos que é “uma lutadora, e que se agarrou à máquina de tricotar. Com 33 anos foi também admitida como funcionária do HCRP, onde esteve na lavandaria e  na copa do Asilo. Depois transitou para o Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro e aposentou-se com 36 anos de serviço, em 2009.”

Carlos conta-nos que tinha o apelido de “menino Jesus”, mas sabe que quando saiu da Creche “vinha um pouco travesso! Fugia para as lojas, andava com um bibe e dizia a toda a gente: o menino tem fome! A minha mãe tinha que trabalhar e por isso deixava-nos algumas vezes sozinhos. Certa ocasião, o meu irmão, que era bebé, ficara a dormir, mas acordou a chorar. Eu era pequeno, e achei que ele tinha fome – preparei-lhe sopas de café com pão e toca de lhe dar colheradas na cama!”

Acrescentou ainda outras traquinices que fazia, como quando dava azeite ao porco, ou roubava morangos ou melancias. Carlos, confessa: “portava-me mal, e naquela altura era diferente… Levei porrada da minha mãe… Uma vez amarrou-me a um poste! Porque o dono dos morangos, era guarda e foi lá a casa denunciar-me. Naquela altura, era uma vergonha ter o carro da guarda à porta. Mas aprendi!”

 

Quando era criança, vivendo perto do Hospital, atravessava o recinto em diversas ocasiões com a mãe. No Natal iam à missa do galo, à capela do Hospital, “a última vez, teria 10 anos e teimava que devia ir para a ala dos homens.” Também se recorda de o pai convidar doentes para irem lá a casa comer e de vir com a mãe visitar os doentes amigos que viviam nas casinhas dos núcleos familiares do HCRP: como a Sra. Emília Cortez ou a D. Leónia que era do Algarve.

 

Depois de 1996 recorda-se da discoteca e da colónia de férias que funcionavam nos edifícios do recinto do antigo Hospital.

Texto baseado em testemunho oral, em 2022. Validado pelo entrevistado. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge