Dr. Tereso e o Hospital Rovisco Pais
O Dr. José Tereso é natural da Tocha, nasceu no ano da inauguração do Hospital Colónia Rovisco Pais, é médico, e no âmbito a sua atividade profissional desempenhou funções e diversos cargos no domínio da Saúde Pública.
Quando lhe pedimos para falar sobre este hospital, iniciou o seu relato com visível entusiasmo, informando: “toda a minha vivência foi à volta das pessoas e atores daquele hospital, que foi o primeiro núcleo de emprego para toda a região gandaresa.”
Desde tenra idade que se recorda de haver “medo daquela doença e de saberem que nas várias aldeias à volta, incluindo na Tocha, havia leprosos. Sabíamos que essa era a razão por que os nossos pais não nos permitiam que fossemos ter com determinados vizinhos. A minha mãe, por exemplo tinha uma grande amiga com a doença e só ia vê-la às fugidas do meu pai, e este era um homem muito liberal, mas eu estava absolutamente proibido de ir a casa daquela senhora. Ainda hoje sou amigo do filho. Era assim, naquela época. No hospital também não podíamos entrar, só entravam os funcionários e pessoas autorizadas, depois de passarem na portaria, tal como actualmente”. Ao falar disto vêm-lhe à memória muitos funcionários do hospital com quem conviveu e que viviam nas aldeias em redor. E recorda que “a maioria dos funcionários tinham um ofício lá dentro e outro cá fora, como o Sr. Constantino que era enfermeiro no hospital e barbeiro cá fora.”
Igualmente, como amigo de infância de um dos filhos do primeiro diretor, Dr. Manuel dos Santos Silva e posteriormente como seu genro, refere: “habituei-me desde muito cedo a ouvir falar do Hospital Rovisco Pais, das vivências ali passadas, dos sucessos terapêuticos”. Recorda-se de ouvir falar, “na primeira brigada em 1954, e do regime ambulatório, das revistas cientificas que editavam, da biblioteca especializada, da preocupação da vida social no hospital”.
Relativamente ao primeiro diretor do Hospital Colónia Rovisco Pais, posterior Inspetor do Instituto de Assistência aos Leprosos, o Dr. José Tereso traça o seguinte retrato: “o meu sogro era uma grande referência entre os pares, sendo visto como um grande especialista, que além de professor catedrático da Faculdade de Medicina na Universidade de Coimbra, foi presidente da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos”.
Contou-nos ainda como ocorreu esta ligação do seu sogro à lepra: “ele foi convidado pelo Professor Bissaya Barreto, de quem era discípulo e colega na Faculdade de Medicina e Hospital da Universidade de Coimbra, para estudar a lepra, uma prioridade nacional e nessa missão foi conhecer outras leprosarias nos Estados Unidos da América, no Brasil, em Cuba, na Noruega e em África.” Nos Estados Unidos da América conseguiu obter “medicamentos mais recentes – as sulfonas”, em quantidades que passaram a chegar mais regularmente a Portugal “para tratar a lepra lepromatosa, que era a mais prevalente no nosso país”.
O seu primeiro consultório foi no local onde era o do sogro, na sua residência. “Ele era muito estimado pela população da região de tal forma que, por ocasião do seu regresso da primeira grande viagem ao Brasil, se deslocaram duas camionetas cheias de pessoas da Tocha ao cais da Rocha, Conde de Óbidos em Alcântara – Lisboa, para o receber no desembarque do navio.”
Pouco tempo antes de o Dr. José Tereso se casar, o Dr. Manuel dos Santos Silva ficou paraplégico. “Foi operado na Neurocirurgia no Hospital Sobral Cid mas não recuperou. Mas foi sempre um grande lutador, viveu durante vários anos com esta limitação e faleceu em 1985, com a minha presença, no edifício onde hoje é a Administração Regional de Saúde, então serviço de Ortopedia dos HUC dirigido pelo Prof. Dr. Norberto Canha, onde anos depois eu iria trabalhar na reconversão do Hospital Rovisco Pais…” Durante muitos anos o Dr. José Tereso acompanhou-o em muitas das suas atividades, “sendo seu motorista”. E foi neste âmbito que entrou pela primeira vez no Hospital Rovisco Pais: “Foi no dia 27 de Abril de 1974, no preventório, houve uma palestra de dermatologia proferida pelo Professor Poiares Batista aos alunos do último ano da Faculdade de Medicina, com a presença do Prof. Dr. Bissaya Barreto. Naquela altura a lepra era uma área dada na cadeira de dermatologia e ainda se vivia sob o ponto de vista científico com muitas dúvidas e na dermatologia toda a gente tinha que saber muito bem o que era a lepra.”
Confessa que “ao longo das décadas tem assistido a muitas incompreensões perante aquela obra”. Na sua opinião “não tem dúvidas de que foi um hospital leprológico modelar, único em Portugal e dos melhores do Mundo! (dito e escrito pelas sumidades mundiais – ex. Raoul Follereau que visitou o Hospital Rovisco Pais duas vezes). Olhe-se à modernidade que consistia, à época, a existência de brigadas em vários concelhos destinadas a levar a assistência médica e social às populações, a ministrar medicamentos aos doentes, e tudo em articulação com todos os delegados de saúde municipais dos 318 concelhos do país, como do laboratório clinico, da farmácia, da imagiologia, do bloco operatório com uma parede envidraçada que garantia a luminosidade se houvesse interrupção elétrica”.
E, prossegue dizendo: “e o interior do hospital era uma pequena cidade onde existia tudo! Nas proximidades, o Preventório e a Creche, situados na Quinta da Guardiosa acolhiam os filhos sãos dos doentes. Tinham ótimas condições, todavia ficavam separados dos pais… Mas na época era assim, cientificamente”. Admite que este aspeto “acabou por deixar marcas a algumas vítimas da doença e seus familiares”, e por isso entende que “deve haver compreensão nestes casos, para com os traumatizados”, mas acha incorreto descontextualizar factos, pois “aqueles métodos de controlo de contágio eram corretos à luz da ciência daquele tempo e à semelhança do que se fazia nas melhores leprosarias por todo o mundo.”
Acrescenta ainda: “Ficou celebre a visão do Prof. Fernando Bissaya Barreto de oferecer alguma dignidade a pessoas vítimas do ostracismo da comunidade e “vamos ter uma luta contra a lepra e não contra o leproso”, queremos que os doentes fujam para o Leprosário, não queremos que os doentes fujam do Leprosário”. “A preocupação de minimizar o estigma da doença levou o Dr. Manuel dos Santos Silva, na lição proferida no Curso Sumário de Hansenologia realizado no Hospital-Colónia Rovisco Pais de 17 a 22 de Abril de 1972, a propor (com os seus derivados) substituir os termos de lepra e sucedâneos. Assim em vez de lepra, leproso, leprologista, leprótico, leproma, lepra lepromatosa, etc. por hanseníase, doente de hanseníase, hansenologista, hansenóticos, hansenoma, hanseíase virchoviana, etc., em homenagem a Armaeur Hansen, cientista norueguês, que em 1871 identificou pela primeira vez o agente etiológico da doença”.
No seu percurso profissional, o Dr. José Tereso esteve sempre na Administração Regional de Saúde (ARS) e desde 1992, teve sob sua responsabilidade direta o Hospital Rovisco Pais. Nessa altura, recorda que “só já existiam umas dezenas doentes internados e hoje ainda estão alguns ex-doentes no edifício conhecido por Pousadinha. Eu sempre apoiei a ideia de que enquanto lá houvesse ex-doentes, e enquanto quiserem ficar deveria ser respeitado esse desejo. Na verdade vejo esta questão como obrigação moral que o Estado tem com os ex-doentes”.
Relembra, que naquela altura, ele e o Dr. António Tralhão “travaram uma luta” para reajustar alguns termos do protocolo de cedência de áreas e pavilhões que tinha sido feito à APPACDM – Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental de Coimbra no tempo da anterior Ministra da Saúde e que dificultavam muito a gestão do espaço (o mapa anexo não coincidia com a cedência e lesava os interesses do Hospital).
Contornadas as dificuldades, o Dr. José Tereso conta que também foi nessa altura que “comecei a preparação do futuro do Rovisco Pais para Reabilitação”. Embora não fosse a sua especialidade, explica que esteve quase a ir para a especialidade de fisiatria, que “era uma das minhas áreas preferidas” e recorda como este entusiasmo nasceu num congresso de doenças cerebrovasculares na palestra do Dr. Martins da Cunha, fisiatra do Hospital de Santa Maria – “Eu fiquei deslumbrado porque ele era um grande pedagogo. Fazia desenhos para explicar o processo terapêutico do doente. Nós ficávamos admirados a ouvir um mestre a descrever as patologias e as terapêuticas. Mas depois acabei por não ir para a especialidade de fisiatria porque isso implicava ir para Lisboa… Optei por Saúde Pública porque sempre apostei na prevenção da doença/promoção da saúde e a minha passagem no Centro de Saúde de Montemor-o-Velho foi fulcral, porquanto o delegado de saúde municipal, o Dr. Joaquim Pimenta, foi um grande mestre”.
Em 1992 como presidente da Administração de Saúde do Distrito de Coimbra “apresentei ao Ministro da Saúde e ao Secretário de Estado da Saúde, a ideia e necessidade de dar outra finalidade ao Hospital Rovisco Pais (neste ano analisava-se superiormente soluções para as doenças HIV e toxicodependências!), com a proposta de reconversão em Medicina de Reabilitação, que foi superiormente aceite”.
Em 1993 “fui nomeado coordenador da Sub-região de Saúde de Coimbra e Delegado de Saúde Regional e no mesmo ano pelo Conselho Directivo da Administração Regional de Saúde do Centro, presidido pelo Dr. Manuel António Leitão da Silva, como coordenador do grupo de trabalho do estudo de reconversão do Hospital Leprosaria Rovisco Pais”.
Em 1994 ocupando o cargo presidente da Administração Regional de Saúde do Centro conta que continuou a desenvolver-se “o projecto de reconversão do Hospital, com uma equipa multidisciplinar, salvo erro de onze pessoas, em que se incluíam arquitectos, engenheiros, médicos, enfermeiros, administradores hospitalares e até um cirurgião pediatra.
Elaborámos o estudo funcional para o hospital ser reconvertido em Centro de Medicina de Reabilitação, articulando eu o processo a nível do Ministério. Apresentei pessoalmente a proposta ao Ministro da Saúde, Dr. Adalberto Paulo Mendo, que proferiu o despacho, em 17 de Maio de 1995, de “concordo com o ora proposto” para reconversão do hospital e publicado em Diário da República em Setembro desse mesmo ano. O que hoje está reabilitado foi e é no âmbito base desse estudo funcional, aguardando-se actualmente as obras do edifício principal. O Centro de Medicina Física e Reabilitação da Região Centro continuará a dignificar o Serviço Nacional de Saúde, sendo o único desta especialidade da sua pertença”.
(Texto baseado em testemunho oral, em 2020, validado pelo entrevistado. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge)