Dulcínia, ligações e memórias

Dulcínia Paiva partilhou connosco as memórias de alguém, que nunca trabalhando no Hospital Colónia Rovisco Pais (HCRP), manteve uma forte ligação à instituição. O pai, o marido e o seu padrinho trabalharam no HCRP. A residência de família e o pequeno estabelecimento comercial que possuíam na Tocha, eram locais de encontro dos funcionários do HCRP, com quem Dulcínia conviveu deste tenra idade.

Com a partilha destas recordações, surgiram as saudades. D. Dulcínia falou-nos do pai, Antero Inácio, com muita emoção e disse-nos: “era muito modesto, mas era para mim uma grande referência. Tive sempre muito orgulho no meu pai!”

 

O Sr. Antero Inácio era da Tocha e estudara na Escola Industrial e  Comercial do Porto. Era um fotógrafo autodidata e redigiu muitos versos, “alguns para o Rancho da Tocha”. A sua colaboração no HCRP coincidiu com o período em que foi diretor do HCRP o Dr. Manuel dos Santos Silva (1947 e 1952). “Estava incumbido de fotografar os doentes recém-internados, e de fazer o registo fotográfico das lesões à medida que aqueles iam tomando os medicamentos, para documentar a evolução clínica dos doentes”. Dulcínia, recorda-se de dois casos que o impressionaram e que o pai lhe contou: “um senhor que tinha muitos lepromas na face e após o tratamento ficou muito melhor” e “uma rapariga que, por causa da doença, ficou sem cabelo nenhum e pediu ao pai para ser fotografada num local mais isolado”. Estas imagens eram depois “reproduzidas em slides pelo meu pai e eram exibidas nos cursos e congressos de leprologia”.

 

A par deste trabalho, o Sr. Antero Inácio colaborava na revisão dos artigos científicos produzidos pelo Dr. Manuel dos Santos Silva – “colocava vírgulas, um que, que faltava…”. E quando participava nas Brigadas “tratava da escrita.” Desses tempos, D. Dulcínia recordou os convívios em que se reuniam na casa do seu pai, médicos, enfermeiros e outros funcionários do HCRP, e de “no carnaval irem todos mascarados e a assustarem”. Às vezes também ia a irmã superior, Irmã Azinhais – “era uma senhora alta, muito distinta, com um postura exemplar.” Mostrou-nos algumas fotografias feitas pelo seu pai. “Faleceu novo, com 59 anos de idade”, em 1961 mas ela ainda guarda na memória algumas das palavras da homenagem escrita que fizeram a seu pai e o que disseram no jornal Boa Nova no dia do seu funeral (15-09-1961): “colaborou com a incipiente Direcção do hospital Colónia Rovisco Pais, num tempo em que nada havia além dos edifícios. Como ele soube criar em cada doente uma amogo! Como ele soube de lá saír! Que apumo! Que diplomacia!”

 

Dulcínia conheceu o marido no hospital, ele era mais velho, e os pais não concordavam muito com a união, precisamente por causa disso. Mas casaram em 1961 na Sé Nova de Coimbra. Foi acompanhada pelo seu padrinho Dr. Manuel dos Santos Silva. Ele e a sua madrinha, foram grandes referências na sua vida. Ela era enfermeira antes de casar e, juntamente com a Enf.ª Ana Isabel Magalhães, ajudou-a no parto de um dos filhos de D. Dulcínia.

 

O marido, António Ferreira Paiva era enfermeiro e formou-se na Escola de Enfermagem Dr. Ângelo da Fonseca, em Coimbra. Antes de trabalhar na Tocha, em solteiro, já tinha exercído funções em Buarcos e nos Hospitais da Universidade de Coimbra. No HCRP iniciou funções em 1956 e D. Dulcínia recorda-se de ele contar que ainda trabalhou com o Professor Bissaya Barreto, quando vinha operar, e que lhe dizia: “Ó Paiva eu quero isso tudo bem esterilizado (…)!” 

 

Alguns anos após o casamento foi enviado para “brigadas” na região de Leiria, onde o casal acabou por residir. O Enf. António Paiva foi um dos enfermeiros destacados para o serviço de enfermagem domiciliária, que, de mota visitava quinzenalmente os doentes externos para aplicação da sulfona injetável, garantindo dessa forma a consolidação do tratamento. “Alguns doentes chamavam-lhe sr. cirurgião” e havia “uma doente que apenas vestia a roupa interior quando levava a injecção…”, contou D. Dulcínia, acrescentando que “na Marinha Grande havia uma senhora que era doente, mas o marido não sabia! Julgo que terá sido numa das visitas a esta doente que o meu marido teve o acidente de viação. Ia com o cunhado, que faleceu. O meu marido não teve culpa. Teve várias fraturas e ficou condicionado a partir daí. Acabou por voltar para o HCRP e na fase final trabalhava no arquivo clínico, onde esteve até aos 69 anos de idade”.

 

Dulcínia partilhou ainda a estima que tinha pelo Dr. Manuel dos Santos Silva e além das recordações decorrentes do convívio com a família, por ser sua afilhada, partilhou memórias de dois momentos importantes da sua carreira – a homenagem que lhe foi prestada na Tocha quando regressou do Brasil, da qual confessa ainda se recordar das palavras finais do discurso que o padrinho proferiu: “Obrigada gente da minha terra!”; e o jantar oferecido ao Sr. Raoul Follereau quando esteve de visita ao HCRP, e do qual D. Dulcínia fez parte, acompanhado o padrinho, em representação de seu pai.

 

A convivência de D. Dulcínia com funcionários e doentes e tal como outros funcionários do Hospital, também foi madrinha de um filho de doentes.

 

Texto baseado em testemunho oral, em 2022. Validado pela entrevistada. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge