Elias, enfermagem sobre rodas
Elias Paiva formou-se na Escola de Enfermagem Dr. Ângelo da Fonseca em Coimbra, no ano de 1964. Esteve na tropa em Vila Franca de Xira até 1968 e após ter exercido enfermagem durante alguns meses nos Hospitais da Universidade de Coimbra, iniciou funções no Hospital Colónia Rovisco Pais no ano de 1969.
Naquele tempo, recorda o enfermeiro Elias, as pessoas viviam em péssimas condições e com grande promiscuidade. A Lepra, como era conhecida, atemorizava muita gente.
No Hospital Colónia Rovisco Pais, recorda, ainda encontrou alguns indícios de receio de contágio. Alguns médicos abriam as portas com as batas e não tocavam nos doentes. E quando tinham que fazer o “boneco” eram os enfermeiros que “levantavam a camisa aos doentes”. Até os doentes se retraíam quando alguém tentava aproximar-se para os cumprimentar, por isso houve grande admiração quando Raoul Follereau visitou o Hospital e se abeirou dos doentes, cumprimentando-os.
Não se usavam luvas e ensinaram-nos a lavar as mãos. Todo o pessoal tinha instruções para lavar as mãos com frequência. Mas, não se recorda de nenhum funcionário que tenha sido contagiado.
Os gabinetes de enfermagem e os enfermeiros concentravam-se no edifício hospitalar e nos pavilhões de Santa Lúzia e São Vicente. Os médicos e os enfermeiros deslocavam-se aos outros pavilhões e núcleos, quando eram chamados. À noite, alguns enfermeiros escalados faziam a ronda pelos pavilhões. Muitos doentes eram provenientes das imediações do hospital, e, por isso fugiam ao anoitecer. O enfermeiro Elias apercebera-se algumas vezes que os doentes não se encontravam deitados, mas preferia não os denunciar para que não fossem “presos”, em vez disso, procurava conversar com eles quando regressavam, de manhã.
Os doentes que estivessem aptos podiam trabalhar e ganhar algum dinheiro. A remuneração não era elevada, pois o Hospital já lhes facultava alimentação e assistência, mas muitos queriam trabalho para amealharem algum dinheiro. Esta dinâmica ajudava a mantê-los ativos e a manter o Hospital Colónia autossuficiente. Ali havia produção de leite, carne, batata, feijão, etc.
Do ponto de vista assistencial, o Hospital assegurava o acompanhamento em diversas especialidades médicas, tais como dermatologia, estomatologia, ortopedia e obstetrícia. As intervenções cirúrgicas ali realizadas eram inúmeras e por vezes complexas. Para o efeito vinham diversos médicos de Coimbra.
A ação assistencial do Hospital Colónia Rovisco Pais estendia-se a todo o país, através das Brigadas compostas por médicos, enfermeiros e assistentes sociais, e através do Serviço de Enfermagem Domiciliária, que desde 1961 cobria quase todos os distritos.
Em 1970, Elias foi destacado para o Serviço de Enfermagem Domiciliária no Algarve onde esteve durante sete anos. Neste serviço acompanhava os cerca de cento e quarenta doentes de Hansen, identificados pelas Brigadas ou em situação de alta, após internamento no Hospital Colónia Rovisco Pais. A sua missão incluía a visita a todos os doentes, em períodos cíclicos de quinze dias. Às vezes percorria de motorizada quase 100 quilómetros, por dia, para recolher amostras que enviava para o laboratório, ministrar a medicação injetável (sulfona), preencher o boletim diário com as condições clínicas, económico-sociais dos doentes. Tratava os doentes como amigos, cumprimentando-os sempre. Como alguns trabalhavam, evitava visitá-los no horário de trabalho para que não fossem rejeitados pela sociedade. Acabava por fazer trabalho ao sábado e ao domingo também.
Desses tempos, recorda algumas histórias.
Um dia, ia visitar uma doente que lhe apareceu a chorar. A senhora acabou por partilhar que tinha muitas dificuldades para poder ir ao seu encontro e receber a injeção, dado que havia casado e não contara ao marido sobre a doença, com receio que ele a rejeitasse. Suplicava que a passasse para o tratamento via oral. E assim, com autorização do diretor clínico, a doente passou a receber os comprimidos. Anos mais tarde viria a reencontrar esta doente numa das brigadas foguetes que faziam uma vez por trimestre. Nessa ocasião soube que o marido já sabia a verdade e que não a abandonara.
Depois de 1974, e na sequência do 25 de abril, o Hospital Colónia Rovisco Pais, que vinha, nas últimas décadas a conceder cada vez mais altas, diminuiu bastante os novos internamentos.
Um dia, no ano de 1976, numa das visitas domiciliárias em Algoz, perto de Silves, teve conhecimento da existência de um doente que vivia em grande sofrimento. A sua barraca era feita de barro e a cama consistia numa manta sobre uma estrutura metálica. Vivia em condições sub-humanas e a situação clínica era muito preocupante. Elias iniciou então diversas diligências para o realojar ou levá-lo para o Hospital. Primeiro junto do Delegado de Saúde de Silves, que lhe mostrou um armazém apinhado de gente que dormia no chão.
Recorreu ainda ao Delegado de Saúde de Faro, aos bombeiros e como não conseguiu nenhum apoio, e não o podendo internar em outro hospital, levou-o num táxi, de Silves até à Tocha, onde outros colegas enfermeiros a trabalhar no Hospital Colónia Rovisco Pais o receberam e dele cuidaram. Pagou mil escudos ao taxista, do seu bolso, e enfrentou um processo disciplinar, por ter forçado o internamento de um doente novo no Hospital. Mas acabou por não ter consequências maiores porque o doente acabou por falecer cerca de um mês depois. Não se arrependeu. Consolou-o o facto de aquele doente ter passado os últimos dias de vida com outras condições, naquele Hospital.
Em 1977, regressou à Tocha e continuou a exercer no Hospital Colónia Rovisco Pais. Passado algum tempo os doentes acabaram por ter alta e foram embora, mas regressaram alguns meses depois, pois era ali que se sentiam bem. Acompanhou-os até se aposentar, em 2007, e depois ia visitá-los regularmente e manteve com eles uma relação de amizade.
Acredita que foi graças à assistência que tiveram daquele Hospital que alguns doentes e ex-doentes viveram tantos anos.
Quando deixou de ser enfermeiro no Hospital Rovisco Pais, os ex-doentes, que ainda lá residiam, escreveram-lhe uma carta cuja leitura ainda o emociona. Os doentes diziam que ele era como um irmão para eles. E, ele ainda hoje diz: “gostei muito de lá trabalhar. Ali sinto que fui realmente enfermeiro!”
“A única pena que tem é que ainda não se reconheça devidamente esta grande obra e o seu mentor, o Professor Bissaya Barreto, que tanto fez pelo distrito de Coimbra.”
(Baseado em testemunho oral em 2020, validada pelo entrevistado. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge)