Fernando e a sua segunda casa
O Sr. Fernando vive com mais três companheiros na Pousadinha, um dos edifícios que integrava o antigo Hospital Colónia Rovisco Pais (HCRP), onde agora recebe todos os cuidados assegurados pelo Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro. Fomos encontrá-lo numa das suas atividades favoritas – ouvir rádio. Acolheu-nos com a simpatia que lhe é habitual, característica confirmada por quem com ele priva diariamente. De imediato percebemos que é detentor de uma escuta ativa que certamente apurou após perder a visão. Respondeu-nos assertivamente a todas as questões, com palavras bem medidas, encadeadas num discurso simples e tão sereno quanto revelador da sabedoria de uma vida esculpida por um percurso que conta já com oitenta e oito anos, sessenta dos quais ligados ao Hospital na Tocha.
Nascido em 1932, residia com os pais e irmãos numa pequena aldeia perto de Almoster (concelho de Alvaiázere) quando foi observado pela brigada médica do HCRP. Um dos seus irmãos foi um dos primeiros doentes a ser internado no Hospital, em 1947. Na aldeia, não tinha muitas condições pois os pais “eram pobres”. Viveram “muito tempo” mas o pai, “também com a doença, nunca chegou a ser internado”.
Os primeiros sintomas terão surgido quando Fernando tinha dezassete anos, e de acordo com o primeiro registo clínico, datado de 1950, manifestavam-se sobretudo por Epistaxis repetidas e obstrução nasal. A identificação do pai e dos irmãos como doentes de Hansen acabaram por o incluir no acompanhamento regular que as brigadas faziam à sua zona de residência. Nestas consultas eram também recolhidas análises e facultados medicamentos.
Não obstante deste acompanhamento, aos vinte e um anos foi recrutado e chegou a estar três meses na cavalaria em Torres Novas, pois o médico da inspeção militar não acreditou quando Fernando lhe falou da doença. Nessa altura, recorda que tirou fotografias pela primeira vez. Depois o caso foi esclarecido e voltou para a terra natal.
Seis anos mais tarde os registos médicos do HCRP referiam que Fernando apresentava infiltrações na face, manchas nas coxas e os resultados das análises não deixavam margem para dúvidas – estava a desenvolver a forma mais grave de hanseníase. Foi internado com vinte e sete anos, no dia 28 de janeiro de 1958. O Sr. Fernando recorda que, nessa altura: “Eu não sentia nada. Mas análises deram positivo e trouxeram para cá. (…) Já tinha vindo aqui uma vez… Vim sozinho, foram-me lá buscar no carro, numa ambulância. Quando aqui cheguei fui visto por um enfermeiro e instalaram-me no pavilhão 8, onde permaneci durante dezanove anos”. Os pais “nunca vieram visitar-me, eu é que lá ia… Fui lá umas duas ou três vezes. Era bom para matar as saudades da família. Mas ao início estive quase três anos sem conseguir licença. Depois deram-lhe uma de 30 dias!”
Passados todos estes anos faz um balanço positivo e diz-nos: “ninguém vinha de vontade!” Mas “fazia muitas análises, trabalhava… E assim o tempo foi passando e fui-me acostumando de tal forma que já eram uma segunda família…”
O Sr. Fernando confessa ter boas recordações dos funcionários: “Tínhamos bons médicos – o Dr. Nelson, o Dr. Barbosa, o Dr. Pedro, que era diretor” e recordou, ainda com expressão de saudade, “o Dr. Hernani, que morreu de desastre, mas era brincalhão comigo! Dizia que eu precisava de uma dieta de bacalhau assado com legumes e vinho, que era o que ele comia lá na casa dele, no Minho – ele era de Ponte da Barca!” Guarda memórias do Enfermeiro Eduardo da Costa Pirré e recorda que “as irmãs eram boazinhas para a gente”.
Confidenciou-nos que se dava bem com todos, mas conta, com tristeza, que alguns funcionários os tratavam com “uma certa diferença” e julga que isso se devia ao facto de recearem perder “o subsídio de risco de contágio…” E acrescenta “mas não nos tratavam mal… E, tudo mudou quando em Lisboa lhes cortaram o subsídio. Aí já faziam os pensos sem luvas!”
Do tempo em que o HCRP ainda era uma aldeia, refere ter mais saudades “do ambiente todo, da juventude, da camaradagem…” Nessa época trabalhava como sapateiro – “fazia sapatos para os internados. Havia vinte e tal sapateiros! E depois andei nas pinturas e trabalhei na copa no pavilhão. Eramos úteis e eramos bastantes. Todos trabalhavam! (…) Nessa altura tudo era zelado, amanhado, e tudo tinha lindos canteiros.”
Nos tempos de lazer, recorda as sessões de “cinema duas vezes por semana – às quintas-feiras e domingos, no verão, e que, uma vez por ano, se fazia uma festa na capela – o do Sagrado Coração de Jesus.”
Soubemos que era sacristão e nesse papel trabalhou com o Padre José Martins Vaz. Do espaço de oração contou-nos que a Capela tinha “uma ala para mulheres, outra para homens e à frente, era para os de saúde”. E recordou com saudade as peregrinações anuais que faziam a Fátima.
O Sr. Fernando disse com orgulho: “nunca fugi do Hospital, mas havia colegas que fugiam pois não gostavam de cá estar… Tinham saudades da família…”
Quando as regras começaram a ser menos apertadas, e, como diz “com as brincadeiras do 25 de Abril de 1974 começou a dizer-se que isto iria acabar. E tínhamos medo que fechassem aqui e nos levassem para Tábua. Eu acreditei, enganei-me e fui-me embora. Passei a ter consultas de três em três meses”.
Antes de ir para a terra, casou-se com uma doente que também estava no HCRP e o Sr. Fernando contou como tudo aconteceu: “Ela é que me pediu para casar. Era de Mira, queria ir embora mas estava abandonada pela família, que não a queria lá… Também acreditou que isto ia acabar. O casamento foi tratado com a ajuda de um enfermeiro, do padre Afonso e do padre Amando da Tocha e nós casámo-nos na Igreja da Tocha antes de ir para a minha terra”. Não houve vestido de noiva nem fotografias. E quando estavam a tratar da papelada “descobrimos que ela tinha um nome diferente. Aqui dentro era Rosa, mas no registo civil era Maria dos Anjos. Não sei como eram estes enganos mas havia muito casos destes.”
Rosa, faleceu há cerca de quatro anos e quando lhe perguntámos se era bonita, o Sr. Fernando respondeu: “Ela era perfeita”. Nós dávamo-nos benzinho…o problema era a falta de saúde!” Acrescentando que quando foram para Almoster a D.ª Maria do Carmo, mãe do Sr. Fernando, reagiu mal pois “não queria lá mulher nenhuma” por isso “fiz uma casinha ao fundo do quintal para vivermos apartados dos meus pais. Vivemos lá oito anos. (…) Ao início com uma pensão de três contos e trezentos. (…) Cultivávamos umas terras e andávamos por conta dos outros também”.
“A saúde foi faltando” e em 6 de fevereiro de 1989 o Sr. Fernando foi reinternado no Hospital devido a uma intercorrência médica – uma “afeção da vista” na sequência da qual perde a visão. Conta que, na altura, “ainda estavam cá quase duzentos” ex-doentes e repete com tristeza o arrependimento de ter ido embora, dizendo: “Mas fiz um trabalho mal feito! Eu fiz um erro, se soubesse deixava-me estar. Em vez de estar aqui, que estava bem… Eu estou arrependido de ter saído do hospital. E estava aí um médico que me disse que eu com a doença não era para andar por lá era para estar internado….”
E quando perguntamos o que achava que podia ter sido diferente, se tivesse ficado, responde de imediato: Davam-me trabalho outra vez! Mas diziam que iam fechar e eu enganei-me! Fiz mal…”
Hoje, lamenta ter perdido “a vista e a força nas pernas…” mas dá graças pois “ainda cá estou e alguns, mais novos, já partiram!”
(Texto baseado em testemunho oral, em 2020, validado pelo entrevistado. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge)