Irmã Emília e as Filhas da Caridade
A Irmã Maria Emília Bernardino nasceu em 1933, numa aldeia chamada Azinheira perto de Rio Maior.
Com apenas 22 anos rumou ao Hospital da Misericórdia de Águeda, onde a enfermagem era prestada por irmãs Filhas da Caridade de S. Vicente de Paulo. Esteve ali durante vinte e um anos, e com 43 anos foi para o Hospital da Misericórdia de Alenquer.
Voltou, dez anos depois para Águeda, onde durante oito anos cuidou dos idosos do Lar. Dali, seguiu para o Hospital Rovisco Pais, onde permaneceu “trinta anos, seis meses e quinze dias”. Foi das últimas irmãs a sair do antigo hospital, em outubro de 2019.
Das experiências anteriores ao Hospital Rovisco Pais, a que mais a marcou foi a que vivenciou no Hospital da Misericórdia de Alenquer, onde esteve praticamente uma década. Ainda guarda memórias bem vivas: “(…) era um hospital, mas quando lá cheguei era pior que um asilo! Não havia nada para comerem, nem roupa para vestirem. Existiam vinte e tal crianças abandonadas e vários doentes e idosos… alguns que eram encontrados na rua e para ali eram levados… Era a maior pobreza que existia, mas foi onde me senti mais feliz!”
A situação foi sendo contornada de várias formas. “(…) A irmã superior ia à praça e pedia couves para as galinhas…mas não havia galinhas… Era só para poder tirar as couves mais verdes para fazer a sopinha para os doentes e para as crianças! Havia uma quinta, mas andava de renda e estava mal-amanhada. Eu, como era dali perto, quando ia a casa, pedia feijão e outras sementes e levava. Com alguns velhotes, que estavam melhorzinhos, começamos a cultivar a terra… Ao mesmo tempo, eu ia a casas de família dar injeções e fazer pensos e não cobrava de nada…por isso davam-me couves, batatas, etc. Eu aproveitava tudo o que me davam…Era o que eu queria… Para poder dar comer aos doentes! Era uma pobreza… Mas olhe, minha senhora: sentia-me tão feliz no meio daquela pobreza toda… Uma vez escrevi para a Segurança Social a descrever as condições que tínhamos e a pedir ajuda. Mandaram cadeirinhas e colchões, ajudaram muito! Quando saí já estava melhor e hoje é um lar…”
Em Águeda trabalhou com um médico dermatologista onde desenvolveu as suas habilidades e técnicas de cuidado ao idoso e do tratamento de feridas: “Não queria nenhum doente com feridas…não descansava enquanto não as curava. E conhecia as pomadas todas” afirmou a Irmã Emília.
Estas experiências, e o “curso de velhinhos” que tirou em Campolide (Lisboa), ainda na altura em que estava em Águeda, acabaram por ser úteis na realidade que encontrou no Hospital na Tocha onde chegou a 1 de Abril de 1989.
No Hospital Rovisco Pais ainda existiam “cerca de oitenta doentes, que estavam instalados no edifício do Hospital e no Núcleo Familiar 4”. Nessa altura, o Hospital ainda não tinham sido convertido em Centro de Medicina de Reabilitação.
No Conventinho, um antigo edifício dos Crúzios de Coimbra, onde eram os aposentos das religiosas, a Irmã Emília foi juntar-se a mais quatro irmãs que ali desenvolviam os seus trabalhos.
Do tempo em que esteve na Tocha, principia as suas recordações com o episódio que terá estado na origem da ida das Filhas da Caridade de S. Vicente para aquele Hospital no ano de 1947: “Um dia uma irmã adoeceu e foi operada pelo Dr. Bissaya Barreto. No final, a irmã foi perguntar-lhe quanto devia e ele respondeu que não era nada. Nessa mesma ocasião ele contou-lhe que ia fundar um hospital para leprosos e que precisava de irmãs para ajudar nos cuidados. Na época havia muitas irmãs, mas o que se pedia constituía um grande sacrifício, pois podia pressupor que as irmãs que para lá entrassem não poderiam sair. Contudo, este facto acabou por não se aplicar, e as irmãs saíram sempre e até deram catequese cá fora. Nunca ninguém apanhou lepra… No Sanatório dos Covões, em Coimbra, já não foi assim, e duas irmãs contraíram tuberculose! A irmã visitadora, recuperada da operação foi para casa e falou sobre este Hospital às irmãs. Olhe… Todas estavam resolvidas a ir. Já tinha mais do que as que precisava!”
Sobre as irmãs que a precederam, prossegue relatando outros aspetos, que foi ouvindo ao longo dos anos: “Inicialmente vieram quatro mas chegaram a estar vinte e cinco irmãs, em simultâneo. No total foram cerca de cento e vinte cinco irmãs que passaram pelo Hospital Rovisco Pais.” Sublinhou que “As irmãs foram muito generosas e fizeram muitos sacrifícios… No princípio, quando, os doentes tocavam, a pedir ajuda, elas é que tinham de ir aos pavilhões, fosse de dia ou de noite… veja só a lonjura entre pavilhões… E nesse tempo, as irmãs é que faziam tudo, não tinham empregadas, porque ninguém queria ir para lá e toda a gente tinha medo dos leprosos! Dedicaram-se e deram-se aos doentes, leprosos, e estes sempre demonstraram muita consideração por elas.”
A presença de irmãs e de um capelão terão sido decisivas para a realização de procissões dos Ramos, do Corpo de Deus, de Nossa Senhora de que existem registos fotográficos. A Irmã Emília confirma ter ouvido falar destas romarias. Mencionou a existência ainda de pálios e bandeiras, bem como andores pintados pelos doentes. Referiu ainda o hábito dos doentes ornamentarem as ruas por onde passavam as procissões e de fazerem presépios em cada um dos pavilhões e em cada um dos casos haver uma espécie de “concurso” para ver qual estava melhor. Os doentes também faziam teatros e tinham um grupo coral que cantava na missa. Estas cerimónias e tradições integravam a assistência religiosa, juntando-se a outras práticas como as eucaristias na Capela do Hospital, ou as comunhões e batizados dos meninos da Creche e Preventório.
A Irmã Emília reconheceu que “nos primeiros tempos custava-me ver aquela gente… Pareciam caveiras, todos deformados. Estavam curados, mas ficaram muito marcados pela doença. Havia muitos doentinhos ceguinhos, sem pernas ou sem braços… Mas habitou-se. Já a irmã Judite que sempre trabalhou com crianças, quando lá chegou e viu aquilo tudo, chorava bastante… Os doentes não gostavam que ela chorasse… As empregadas ajudaram-na muito e, aos poucos, adaptou-se. Depois, já fazia a roupinha para eles, pois sabia costurar. Eles gostavam muito dela.”
As atividades das irmãs eram equivalentes às de uma Regente. Cada uma era responsável pelo seu pavilhão: “(..) tomavam conta das coisas, elas é que forneciam as seringas e compressas aos enfermeiros, mandavam o material a esterilizar e quando não vinham bem esterilizadas mandava para trás. Geriam as roupas, as loiças e tinham que dar contas de tudo… para dar baixa ao armazém ou substituir, quando algo se estragava.” A Irmã Emília referiu que quando chegou, além destas responsabilidades, ainda prestou cuidados de enfermagem, colocando em prática tudo o que sabia das experiências anteriores.
Nos últimos tempos os doentes já eram seguidos em consultas de especialidades em Coimbra ou na Figueira da Foz e a Irmã Emília era, segundo diz “a dama de companhia.” No dia-a-dia também lhes “comprava o que queriam na praça… o que precisassem, e a pedido deles levantava-lhes a pensão, guardava o dinheiro e de tudo lhes dava contas.” Na sua opinião, “(…) o que eles mais precisavam era de carinho!” E recorda-se com saudade que no seu tempo “(…) faziam passeios a Fátima e outros locais, sendo organizadas colónias de férias para os doentes nas praias da Barra – Aveiro, Esgueira, Sintra e no Algarve.”
Ao longo das três décadas em que esteve no Hospital Rovisco Pais foi “colecionando histórias” ora vividas, ora contadas pelas outras irmãs ou pelos doentes. Fala com amizade dos doentes e recorda alguns deles durante a entrevista: “Havia uma doente, chamada Valeriana… Sabe eram novos e gostaram um do outro. Então, lembraram-se de sair e ir ter com o Padre Amândio que os casou. Mas apanharam-nos na rua e foram para a “cadeia” do hospital, onde estiveram uns dias. Depois, no Hospital, lá lhes deram uma casinha, num dos núcleos familiares, e foram viver juntos. Tiveram vários filhos, que foram criados na creche e no preventório. Um dia, ela disse-me: – Afinal a doença não era contagiosa, pois os meus filhos foram gerados na força da lepra e nunca apanharam a doença!”
Também partilhou a história de Honorato, um doente alentejano “que quando foi para o hospital não tinha nada, nem o que vestir! Eu arranjava-lhe roupas que eram dadas por uma médica, e a irmã Judite adaptava-as para ele. Andava sempre bem vestido. Não tinha nariz, e eu ia com ele todas as semanas a Coimbra para lhe injetarem líquido na cara com intuito de lhe poderem arranjar o nariz. Depois quando já tinha nariz, ficou todo contente, pois já estava igual aos outros. Mas, teve pouca sorte… Algum tempo depois, apareceu-lhe um tumor na boca. Como ele não era batizado, preparou-se e esperamos para ver se melhorava. Mas, ele cada vez piorava mais. Quando lhe perguntámos se queria ser batizado ele assentiu e fez-se o batismo, mas ao fim de quinze dias faleceu. Olhe, ele ficou todo desfigurado, ficou sem língua… sofreu tanto e sem se queixar, nunca dizia nada…. Houve alguns casos muito tristes!”
Recordou também o caso de Anastácio, “(…) um menino que nasceu no Hospital Rovisco Pais, andou no Preventório, que hoje é padre e se encontra em missões em Moçambique, e que, quando foi ordenado, realizou a missa nova na capela do Hospital Rovisco Pais”.
Ainda sobre os doentes, concretamente sobre o processo de internamento obrigatório no hospital, a Irmã Emília disse: “Eles irem para lá… não aceitaram muito, porque muitos foram debaixo de prisão e não queriam ir. Para alguns foi sempre um desgosto muito grande… deixarem família e os filhos! Aquilo devia custar um bocadinho.” Relativamente às regras existentes referiu: “O que havia de mal era eles não poderem sair e se fizessem algo errado irem para a prisão. Mas também se não fosse assim e com tanta gente… E depois muitos deles não se davam uns com os outros… Batizavam-se com alcunhas e não se falavam entre eles.” E acrescentou com alguma tristeza: “Era uma coisa que notava no meu tempo, mas nunca percebi porquê.”
A Irmã Emília aludiu ainda às condições oferecidas no Hospital: “lá dentro não lhes faltava nada, nem da parte material, nem religiosa, eles tinham tudo, alimentação, roupas e ainda, o pouco trabalho que faziam, recebiam um dinheiro, que iam juntando. Eu própria cheguei a fazer os papéis com as horas que faziam para receberem. Não era muito, mas era um estímulo. Havia também um professor que organizava uma espécie de escola de adultos e, no meu tempo alguns ainda fizeram o 2º ano. Nos Núcleos Familiares havia jardim e horta onde cultivavam hortaliças e não só, e cada família cozinhava as suas próprias refeições. Na Quinta da Fonte, com quase 150 hectares havia ainda dois campos de futebol e uma lagoa, onde iam passear, fazer piqueniques, andar de barco ou pescar.”
Alguns dos doentes que foi encontrar no Hospital chegaram a ter alta e saíram do Hospital mas voltaram, por diversas razões. A Irmã Emília confessou ainda, com alguma tristeza, que “(…) alguns doentes nunca recebiam a visita das família, contudo, quando faleciam, se deixasse dinheiro iam logo buscá-lo! E havia casos de doentes que tinham um bom pé-de-meia, e alguns, dos que saíram, reconstruíram a vida e criaram os seus próprios negócios. Mas a maior parte já faleceu. Ainda se encontra quatro doentes no Hospital. Estão bastante idosos mas vivem em excelentes condições, na Pousadinha!”
(Texto baseado em testemunho oral, em 2020, validado pela entrevistada. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge)