O Laboratório pelo Sr. Rainho
O Sr. Jorge Rainho Costa trabalhou no Laboratório do antigo Hospital Colónia Rovisco Pais (HCRP) desde 1968 e contou como este serviço funcionava. Confidenciou que: “Fui eu o último a sair, e quem fechou a porta!” E, assim, desde a sua aposentação, em 2005, aquele laboratório encerrado perpetuava, em quem o visitava a sensação de que o tempo havia sido apenas suspenso e que a qualquer altura aquele espaço poderia voltar a ganhar vida e a laborar novamente.
O ano de 2020 marcou o fim dessa espera ou esperança fazendo correr o tempo. O velho edifício do hospital que “cumpriu a sua missão” iniciou um novo percurso assistencial. As obras, agora em curso, irão transformar os espaços onde há muito quase só habitavam memórias em torno de outra epidemia e que foi mote da sua existência – a doença de Hansen.
O Sr. Rainho, não voltou ao hospital a tempo de ver uma última vez o laboratório. A pandemia do Covid 19 atrasou o encontro. Quando voltou ao hospital, vi-o a ser renovado. Acedendo ao nosso convite, veio partilhar as suas memórias. Reencontrou espaços e pessoas que o emocionaram e enriqueceu o património imaterial que lhes estarão intrínsecos.
Do laboratório reviu o recheio – um espólio único no país constituído por equipamentos, ficheiros e amostras que futuramente darão corpo a um dos núcleos da exposição museológica. No meio deste reencontro, o analista foi reconhecendo e ajudando a identificar peças. Havia muitas perguntas e o Sr. Rainho, no meio do entusiasmo foi desfiando memórias essenciais para completar o puzzle desta história – a sua e a do seu mundo profissional.
Contou-nos que é filho de agricultores e trabalhava nas terras dos pais mas a dada altura encontrou, no jornal “Voz da Figueira”, um anúncio de recrutamento para as limpezas no Hospital da Figueira da Foz, e decidido a mudar o rumo da sua vida, concorreu. Não gostou muito do trabalho, por isso tentou candidatar-se ao curso de enfermagem, ministrado nos Hospitais da Universidade de Coimbra (HUC), mas acabou por tirar o curso técnico de análises clínicas nos HUC e foi estagiar durante seis meses no HCRP, onde lhe chegaram a pagar como eventual. Estava perto de casa e como gostavam do seu trabalho acalentou “a esperança de ficar”. Mas “o concurso na Tocha demorou muito e por isso concorri para o Hospital Curry Cabral em Lisboa. Este hospital era especializado em doenças infetocontagiosas e foi de onde vieram os primeiros doentes internados no HCRP. Fui selecionado e embora tentasse desistir do lugar, acabei mesmo por ser chamado e tive que me apresentar em Lisboa. Os concorrentes eram poucos para os lugares e ia abrir o serviço de reanimação, que teria um laboratório próprio…” Quando, quase dois anos depois, abriu o concurso na Tocha, o Sr. Rainho concorreu, já com experiência, e acabou por ficar. O chefe do laboratório era o Dr. Seabra Santos e mais tarde, sucedeu-lhe a Dr.ª Fausta Gaspar Nogueira, que assumiu a chefia do laboratório até se aposentar.
Inicialmente “eramos quatro e eu trabalhava mais com o microscópio, mas depois fomos reduzindo até o laboratório deixar de funcionar. Quando a Dr.ª Fausta se reformou, nos anos 90, o serviço já não era tanto, pois felizmente a lepra tinha reduzido, o hospital e os pavilhões foram ficando vazios, e desse modo não se justificou contratar um novo técnico superior. As colheitas continuaram a fazer-se no hospital mas as análises eram realizadas Faculdade de Medicina em Coimbra e eu acompanhava-as no transporte. Só fazia algum hemograma ou glicémia caso fosse uma urgência” contou o Sr. Rainho.
Mas quando o Hospital Colónia Rovisco Pais estava em pleno funcionamento “era único hospital de lepra no país e o segundo na Europa. Nele se situava o único laboratório que fazia o diagnóstico da lepra. E, faziam-se todos os dias análises de despistagem de lepra. Recebíamos pedidos de análises de todo o país, amostras de outros hospitais e médicos, para confirmação de suspeitas. Se o resultado fosse positivo, o doente ficava a ser seguido pelo HCRP”. Paralelamente “recolhiam ao laboratório as amostras que eram colhidas durante as brigadas que percorriam país, por zonas, uma a duas vezes por ano”.
O Sr. Rainho integrou estas brigadas e confessou que era do serviço externo que mais gostava. “Eram dias intensos, o serviço era muito cansativo, andávamos fora vários dias, e dormíamos em pensões mas recordo o ambiente de camaradagem entre colegas e de como fui conhecendo o país de canto a canto. Neste serviço sentia que havia uma missão e ficávamos muito satisfeitos quando identificávamos um caso novo!”
Nas brigadas “havia um roteiro e tínhamos os doentes marcados. Íamos pelas aldeolas, onde havia mais doentes, muitos míseros. Íamos visitar os doentes porque eles não tinham transporte, uns não tinham meios, outros viviam em lugarejos pobres em que tínhamos de ir a pé. O meu papel era ajudar a fazer o processo de doente com o historial, as análises e a identificação do tipo de lepra… Nestas brigadas acompanhávamos o doente, que tinha que fazer análises uma vez por ano, bem como os comunicantes ou familiares a quem se faziam testes que determinavam a sua resistência à doença – a Lepromina”.
Tentando perceber como tudo se processava, o Sr. Rainho explicou-nos como faziam a colheita para a análise que permitiria confirmar o diagnóstico de lepra, e que consistia na análise de muco e pele: “Na colheita do muco nasal era pedido ao doente que se assoasse, e depois de limpas as fossas nasais, íamos com uma zaragatoa até ao septo do nariz, rodando suavemente e fazendo, subsequentemente um esfregaço de 2 ou 3mm no centro de uma lâmina. Posteriormente, esta lâmina seguia os direitos da coloração, sendo vista ao microscópio. Na colheita da pele, observávamos o doente de forma a identificar uma mancha, lepromas ou caroços onde o doente, normalmente não tinha sensibilidade para aí se fazer uma pequena biopsia. Anestesiávamos um pouco, e com um instrumento próprio recolhia-se um pouco de tecido que se punha depois em formol. Antes de entrar no formol era feita exame direto. Depois para confirmação fazia-se uma biopsia mais profunda, na qual a coloração era a mesma. Estas lâminas entraram em estudo pois se o resultado inicial fosse negativo, ia-se repetindo a coloração, para se ver se alastrava algum tempo depois”.
Prosseguindo a explicação, e a propósito da doença de Hansen, o Sr. Rainho mencionou que havia três tipos de lepra – Lepromatosa, tuberculoide, nervosa. Que “a forma lepromatosa era a mais maligna e contagiosa, mas que não era hereditária”. Adicionalmente referiu que “quando os lepromas já eram visíveis, significava que a pessoa já possuía a doença há muito tempo”.
Sobre o teste da Lepromina ficámos a saber pelo Sr. Rainho que a mesma “era produzida no HCRP. Era extraída de um tecido colhido do tipo lepromatosa, seguidamente fervido, triturados em almofariz, metido em formol e depois filtrado e armazenados em frasquinhos no frigorífico”. A função destes testes era determinar a resistência ao bacilo em pessoas não infetadas e determinar o tipo de lepra quando já infetadas. Assim, como explicou, “quando o teste era feito a familiares ou comunicantes dos doentes, e se verificava um resultado positivo significava que a pessoa testada possuía alguma resistência/imunidade à lepra e por isso se contraísse, não seria a forma mais maligna. Quando injetado no próprio doente permitia perceber o tipo de lepra que tinha. Por exemplo, se ao fim de três semanas no local de inoculação não houvesse reatividade, mantendo-se um pequeno caroço duro estávamos perante um teste negativo e indicação de que era do tipo lepromatoso”.
O Sr. Rainho conta que no período inicial havia muitos casos de lepra e que verificou a existência de algum desconhecimento sobre a doença: “qualquer coisa era lepra e havia muitos casos em que vinham e depois verificávamos que não era lepra. Uma vez veio um médico acompanhar uma senhora da Madeira. Estava muito confiante, pois acreditava ter descoberto uma doente com lepra. Mas quando entrou na sala de colheitas, eu disse-lhe: eu como analista digo que isto é tudo menos lepra, para mim é sarna! O médico ficou ofendido por eu duvidar do seu diagnóstico e disse-me: Sim, eu é que sou o médico e sei de onde venho e o que estou a fazer! Insistiu em fazer a análise da lepra. Fui então colocar o caso à minha chefe, no 1º andar e ela foi ver a doente e informou o médico que iam fazer as duas análises. Retirámos amostras e na análise o muco era negativo e os fungos positivos. Era sarna, de facto!”
De tudo o que fomos sabendo do laboratório e do hospital é percetível não só o papel importantíssimo que laboratório do HCRP teve no diagnóstico e investigação da doença, como no processo de cedência de altas e licenças aos doentes, uma vez que as mesmas dependiam dos resultados das análises regularmente realizadas. Por isso aproveitámos para saber mais e o Sr. Rainho recordou algumas das regras em vigor para obtenção de licenças e altas pelos doentes: “O doente era autorizado a ter uma licença de um dia quando tivesse uma análise negativa ao muco e à pele, ou duas negativas ao muco e uma pouco positiva à pele (fraca). As licenças de um mês só eram possíveis ao fim de doze análises negativas (muco e pele)”.
No caso das altas, explicou: “era necessário ter várias análises negativas, estar clinicamente estável e ter condições para fazer a sua vida em casa. Porque se o doente estava para ter alta, ia previamente o Serviço Social ver como era o ambiente familiar, como estava a casa e só depois disso podiam conceder a alta”. No fundo no HCRP havia uma assistência dupla – médica e social, e como esclareceu o Sr. Rainho: “a assistente social era muito favorável aos doentes que precisavam de auxílio. Além da sua condição de saúde, olhava às suas condições sociais e também lhes eram concedidos apoios monetários após a alta”.
Na fase inicial, havia muito desconhecimento e as regras eram mais apertadas. Mas na final do HCRP o Sr. Rainho reconhece que “as regras já não eram tão rigorosas”. Ele fazia por estreitar laços de amizade que foi construindo com doentes – “com um aperto de mão, com a recolha de sangue sem o uso luvas, pois isso significava que nós não tínhamos medo da lepra e os doentes ficavam mais à vontade e felizes!”
Olhando para trás o Sr. Rainho recorda tudo com um brilho nos olhos e com as certezas que a distância do tempo, a idade e a experiência lhe foram trazendo, diz-nos ainda: “se na década de 1940 havia um número significativo de doentes e familiares, atualmente quase não existem casos… A lepra foi eliminada e o hospital cumpriu a sua missão! Hoje há outras doenças e sabemos lá qual é o tratamento!”
(Texto baseado em testemunho oral, em 2020, validado pelo entrevistado. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge)