Lucy, a gémea
Lucy* e o irmão eram gémeos. A mãe teve três gestações gemelares e apenas nesta, ambos os bebés sobreviveram. Tinham meses de vida quando as assistentes sociais do Hospital Colónia Rovisco Pais os acolheram no Preventório, com a concordância dos pais.
A família vivia com enormes carências e a mãe tinha estado internada anos antes no Hospital e ali dera à luz um dos dez filhos que teve. Desde que tivera alta do Hospital era visitada regularmente pelas assistentes sociais, que vigiavam o seu estado de saúde e dos restantes membros da família, prestando auxílio no que estava ao seu alcance.
Os gémeos foram criados no Preventório, por onde passaram mais três filhos do casal.
Uma das irmãs mais velhas, que já se encontrava na instituição, ajudava a cuidar deles enquanto eram bebés.
Do tempo em que esteve no “colégio”, como Lucy chama ao Preventório, enumera várias recordações: como o delicioso pão e o leite fresco pela manhã, a vinda de um sapateiro, que tirava medidas e fazia o calçado ajustado a cada menina, e as costureiras que trabalhavam na lavandaria e faziam as roupas de todos.
Refere que viviam em excelentes condições e instalações.
Na escola não se juntavam com os rapazes, mas ao recreio brincavam juntos. Os jardins eram bonitos e havia baloiços e campos onde corriam e jogavam à bola. Ao todo, eram cerca de cinquenta crianças, julga.
Também se recorda do gabinete médico, onde ia ao dentista, bem como da missa dominical na capela do Preventório.
À noite, dormiam em camaratas igualmente separadas por sexo, com seis camas individuais, em cada uma.
Por vezes, havia uma reprimenda, ou eram chamados ao gabinete da diretora. Mas continua a achar que tudo fazia parte e que foi importante para a educação. “Havia meninos mesmo traquinas.”
As ocasiões de que mais gostava eram as festas – Carnaval, Páscoa e Natal, e as férias de verão.
No Natal, a árvore era grande e chegava numa carrinha. Era colocada ao centro do salão e decorada com os presentes para os meninos. No dia da Festa de Natal ia lá o Sr. Professor Bissaya Barreto, alguns artistas ou grupos, como a Estudantina de Coimbra. Os meninos ensaiavam previamente algumas canções e peças de teatros com o Padre Afonso e a D. Maria Luísa.
No verão, passavam uma quinzena na Colónia Balnear na Gala (Figueira da Foz), e todos os dias iam à praia. A diretora do “colégio”, D. Maria Luísa, ia lá visitá-los e levava bolos.
Quando terminou a instrução primária, fez o exame de admissão em Cantanhede e nesse ano o novo administrador, Dr. Pedroso de Lima, disponibilizou uma carrinha ao colégio garantindo que prosseguissem estudos em Cantanhede e depois na Figueira da Foz.
Lucy frequentou até ao 5º ano na Escola Comercial da Figueira da Foz.
Quando não estavam na escola ou a estudar, ajudavam nas tarefas da cozinha, da engomadoria, ou a dar banho aos mais novos. Era assim que iam aprendendo a fazer tudo. Além desta aprendizagem recorda-se de uma senhora que ensinou a bordar, fazer croché e costurar.
Pretendia continuar a estudar, mas após o 25 de abril de 1974 começaram a surgir alterações e muitas crianças começaram a ser entregues às famílias.
Pouco antes de fazer 15 anos uma das assistentes sociais levou-a ao Mercado de Coimbra onde lhe apresentou a sua mãe – “uma mulher com marcas da doença nas mãos, que me era completamente desconhecida…” recorda – “Disseram-me que daí em diante devia ficar com ela”. Este momento foi para Lucy um dos mais dolorosos da sua vida. Como poderia ficar ao cuidado de “quem nunca a fora visitar ao colégio? De uma desconhecida?”
A partir daí a sua vida mudara completamente.
A família era muito pobre e as condições de vida muito diferentes das que vivera no “colégio”. Sabia fazer tudo e por isso começou logo a trabalhar fora de casa, mas quando não estava no trabalho, fartava-se de trabalhar para a família: lavava enormes quantidades de roupa de toda a família, pais, irmãos e sobrinhos. E a remuneração que recebia tinha que a entregar na totalidade aos pais.
Sentia-se completamente deslocada, os laços que uniam a mãe aos filhos que tinha criado consigo eram nitidamente diferentes e isso era notório na forma como tratava os que tinham estado no Preventório. A mesma diferença se notava no relacionamento entre irmãos.
Alguns anos mais tarde, a irmã mais velha, que havia saído do Preventório antes dela e que, entretanto, vivia em Marrocos com o marido, convidou-a para passar férias com ela. Foi, e prolongou a estadia o tempo que conseguiu.
Entretanto, pouco depois de regressar conheceu o atual marido e quando casou, os pais não a ajudaram com os preparativos nem estiveram na cerimónia de casamento.
Atualmente, quase a fazer sessenta anos, mantém contacto esporádico com os elementos da família. As relações mais próximas continuam a ser com os irmãos que estiveram no Preventório. Os pais já faleceram, mas Lucy conserva a mágoa. Sente que a abandonaram, não entende porque nunca a visitaram enquanto esteve no Preventório. Acredita que o seu destino teria sido outro se tivesse sido criada com a família, e que ter sido educada no colégio lhe deu outras oportunidades, mas não entende porque os pais não tentaram criar laços verdadeiros com ela, mesmo quando mais tarde foi viver com eles.
No seu íntimo, e associado ao “antigo Hospital Rovisco Pais”, surgem sempre sentimentos de saudade dos tempos vividos no Preventório. Sublinha a gratidão por tudo o que aprendeu na instituição referindo: “tudo o que sou hoje devo-o ao que aprendi no colégio”.
*nome fictício.
(Baseado em testemunho oral, em 2020. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge)