Maria Emília e o Serviço Social

D. Maria Emília Monteiro Pais Alves é natural de Bragança. Foi para Coimbra pouco depois de concluir o liceu, para frequentar a Escola Normal Social. O entusiasmo com a área de serviço social surgiu do contacto com a técnica que trabalhava na sua área de residência.

Nessa altura, a Escola Normal Social de Coimbra funcionava junto à praça da República. Alguns professores eram da Faculdade de Medicina e por isso havia aulas do seu curso naquele edifício. No período em que estava a estudar, residiu no Lar de Santo António, na rua Antero de Quental e realizou estágios no Ninho dos Pequenitos, que funcionava à época em edifícios que existiam no local onde hoje se encontra o Teatro Académico Gil Vicente. D. Maria Emília recorda ainda as fardas que usava – “para os estágios, era composta por bata, avental e véu branco e para andar na rua, uma saia às pregas com casaco azuis e uma blusa verde”. 

 

Pouco depois de ter concluído o curso soube que estavam a recrutar técnicas auxiliares de serviço social para o Hospital Colónia Rovisco Pais (HCRP) na Tocha e por isso concorreu. Era então diretor o Dr. Pedro Magalhães Basto, que mais tarde foi para o Porto. 

 

 

D. Maria Emília conta que em 1956 “quando viemos para o HCRP, eu e mais quatro técnicas auxiliares de serviço social, não havia Serviço Social. Foi o administrador, Dr. Alberto Machado, meu conterrâneo, que organizou o serviço no HCRP. Até ali só existia uma senhora a trabalhar nesta área, que estava no Creche, e que depois se juntou a nós. Eu vinha com os olhos fechados, não sabia o que era um serviço destes. Mas o Dr. Alberto Machado orientava-nos, imaginava e dizia-nos o que entendia que deveria ser o Serviço Social no Hospital.” 

 

O Serviço Social situava-se por baixo da residência das irmãs, no Conventinho e D. Maria Emília conta que “o gabinete ficava ao fundo do corredor, depois do gabinete do administrador e da secretaria.”Inicialmente a chefe do serviço era a D. Maria Augusta Moutinho Pereira e mais tarde passou a ser a D. Maria Madalena Rico.

 

 

A atuação do Serviço Social estruturava-se, genericamente, em dois sectores – o interno e o externo, cujo funcionamento, D. Maria Emília foi descrevendo da seguinte forma:
“Quando os doentes internados se dirigiam ao serviço, eles é que escolhiam com qual técnica queriam falar. Geralmente apresentavam-nos problemas relacionados com a família. Nós ouvíamo-los, depois transmitíamos a situação à nossa chefe, que decidia se atendíamos logo ao solicitado ou se íamos fazer uma visita domiciliária”. 

 

Além das Brigadas Médicas “que integravam sempre uma técnica do Serviço Social do HCRP, e que se destinavam a despistagem de casos, existiam também as Brigadas Sociais realizadas regularmente pelas técnicas do Serviço Social aos doentes ou às suas famílias”. No âmbito destas eram feitos inquéritos sociais e epidemiológicos, visitas domiciliárias e outras diligências. Ao recordar estas visitas, D. Maria Emília refere que relaciona com atual situação do Coronavírus pois “(…) lembra-me muito o meu princípio no HCRP, em que ao entrarmos na casa deles, deixávamos o calçado à porta, não tocávamos nos doentes… Havia um conjunto de regras de distanciamento”. E acrescenta: “Nas Brigadas Médicas uma de nós assistia às consultas”. 

Quando o doente era internado por outra via “fazíamos visitas domiciliárias com o intuito de conhecer a terra deles, o seu modo de viver e a sua família. Em qualquer das vias íamos seguindo todos os casos sociais… E quando já havia um membro internado, víamos a restante família e trazíamos notícias destes ao que já estava no HCRP e vice-versa”. Muitas vezes estes doentes “tinham filhos e, sempre que eles queriam, nós orientávamos a sua entrada na nossa Creche ou Preventório. Raramente as crianças ficavam com outros familiares quando os pais eram internados”. 

 

 

No seu trabalho D. Maria Emília gostava de tudo, mas admite: “(…) custava-me muito quando tinha que receber os filhos dos doentes, que muitas vezes eram bebés, e ir levá-los ao Preventório… E eu entretanto tinha um filho pequenino… Era uma coisa difícil… Eu fugia sempre de ir fazer esse serviço, mas tivemos uma época em que havia muita criança… E havia casos em que os filhos também já estavam doentes… Tinham sido contagiadas e por isso residiam com os pais nos núcleos familiares. Como o caso de uma doente de Penacova que trouxe três filhos, todos já com a doença!”.

 

D. Maria Emília acrescenta que “também se verificaram casos em que a mãe ou pai apareciam com a doença e só, depois, na Brigada seguinte, surgiam sintomas nos filhos ou noutros “comunicantes”. Muitas vezes os próprios doentes é que diziam que desconfiavam que alguém da sua família tinha a doença, pois já iam conhecendo os sintomas. Recordo-me de uma criança que foi para o Preventório e pouco tempo depois apareceu com a doença!”. 

Segundo refere “os filhos geralmente curavam-se antes dos pais, mas havia alguns pais que ficavam bem e iam embora, deixando os filhos doentes ainda internados”. 

 

O contacto direto com as regiões de proveniência e com as famílias permitiu-lhe constatar as condições em que viviam a maior parte dos doentes. D. Maria Emília refere que “(…) normalmente os doentes eram todos da classe pobre, muito raro nos apareciam doentes de outra classe. Eram casas muito pobres, não tinham condições de higiene… Havia muitos doentes em Pombal e Cantanhede. Eram os concelhos com mais casos.” 

 

 

O processo de internamento era naturalmente um momento de rutura com a realidade quotidiana do doente e das suas famílias e D. Maria Emília disse: “era raro o doente que aceitava o internamento de boa vontade, até porque geralmente eram bastante longos”. Havia obrigatoriedade de internamento para os doentes contagiantes (Decreto-Lei 36.450 de 1947) e “a maior parte dos doentes tinham a lepra lepromatosa”. Segundo D. Maria Emília os “doentes resistiam porque tinham vários filhos menores, tinham conjugue”. Confessa: “no início assisti a situações muito dramáticas. Eu não magoava os doentes de maneira nenhuma… Mas eles coitados, não contavam com o internamento, andavam sempre à vontade deles, uma vez que antes de existir o HCRP ninguém tratava deles ou acudia, nem havia médicos de família…”

 

Na verdade, aqueles que eram conhecidos na comunidade em que se inseriam conviviam com o estigma fazendo a sua vida a trabalhar nas suas terras ou em outras atividades, por vezes com imensas dificuldades. D. Maria Emília recorda de lhe contarem que “havia doentes que vinham à feira, não chegavam a entrar na Tocha, pois já nessa altura, as pessoas não os deixavam entrar. E em Pombal era a mesma coisa. Tinham medo!”

 

Com a criação do HCRP e a legislação sobre a Lepra a situação alterou-se gradualmente. Mas D. Maria Emília recorda que “no início, houve muitos casos, sobretudo de homens, que acusavam a doença em testes positivos, realizados nos rastreios, e sendo notificados pela guarda, não acatavam, por isso recebiam ordem de prisão, sendo depois encaminhados para o HCRP com internamento compulsivo. As mulheres, por sua vez lá aceitavam, com dificuldade, mas acatavam. E, nós, muitas vezes, tínhamos que ir convencê-los.”

 

 

Os internamentos prolongados e a existência de doentes com relativa autonomia requeriam uma intervenção do Serviço Social mais diversificada a qual se estendeu aos domínios da ergoterapia e da ludoterapia, quer através das diversas oficinas e escolas para doentes, que funcionaram dentro do Hospital, quer através da realização de festas. 

 

 

D. Maria Emília recorda que: “Havia uma escola com setor feminino e setor masculino, onde faziam a instrução primária, que funcionava no Asilo e de que eram professores dois doentes com mais instrução – o Sr. Marques e a D. Catarina. Também havia uma escola no Preventório para as crianças. Os professores diziam-nos como estavam os alunos e quando eles não queriam ir à escola, nós íamos falar com eles e convence-los a voltar”. 

 

 

Também existiram locais para aprendizagem de ofícios e outras manualidades. D. Maria Emília relembra a escola de bordados: “havia uma senhora que estava internada proveniente de Castelo Branco que ensinava as raparigas entre os 13 e 16 anos e elas bordavam que era uma maravilha! E como havia doentes que tinham sido latoeiros, sapateiros, pedreiros, pintores ensinavam os mais novos e iam fazendo o que era necessário no hospital”. 

 

 

Recorda, igualmente que “(…) organizávamos muitas festas, até era a nossa especialidade! Festas pelo Natal e pela Páscoa, procissões… E vinha sempre um rancho, um acordeonista ou alguém a cantar…Tínhamos sempre uns artistas! A seguir ao 25 de abril, com a diminuição dos doentes, foi possível junta-los num único pavilhão e uma das casas dos trabalhadores que ficou livre e foi usada para fazer espetáculos – tinha até um palco, cadeiras e luzes”. 

 

 

A par da já referida assistência social e médica do HCRP verificaram-se, através do Serviço Social daquela instituição, auxílios monetários e não só, concedidos aos doentes e suas famílias por intermédio da Associação dos Doentes de Hansen (formada pelo hospital e seus funcionários), ou pela Segurança Social. Estes podiam materializar-se, como exemplificou a D. Maria Emília em “subsídios aos filhos menores, verbas de apoio no processo de construção de casas, especialmente na fase de acabamentos, pagamento de dívidas, pagamento de viagens às famílias de internados na Páscoa e no Natal (aqueles que não tinham licença ou que estavam impossibilitados de se deslocarem), aquisição de géneros ou ferramentas para criação de oficina onde poderiam desempenhar um ofício aprendido e obter o seu sustento… Também arranjávamos alguns empregos. Íamos ajudando a orientar a vida deles lá fora, após a saída do Hospital”. 

 

O HCRP não era uma instituição tão fechada sobre si mesma, como à partida se imagina. A conversa com a D. Maria Emília acabou por reiterar essa ideia. A este propósito referiu que no início “os doentes não se podiam cruzar, as raparigas só podiam sair com as irmãs… Mais tarde isso acabou, os doentes já saiam dos pavilhões, já namoravam e até houve muitos casamentos. Eu fui madrinha de um casamento e de um batizado e o meu afilhado ainda hoje me vem visitar”.

 

 

Era igualmente percetível uma relativa abertura ao exterior no facto de os doentes poderem receber visitas: “Só havia visitas aos domingos, e não havia muitas, porque era longe. Geralmente os visitantes entravam nos diversos pavilhões e núcleos, e conviviam (sem barreiras ou vidros de separação) com os doentes nas salas de visitas ou nos jardins. Quando era altura do Natal ou na Páscoa o Serviço Social providenciava o pagamento das viagens às famílias para virem visitar os doentes, quando estes não podiam sair”. Apenas as visitas dos pais internados às crianças que estavam no Preventório eram feitas na portaria. Antes de existir o locutório (construído em 1962) “não havia visita coletiva das crianças. Era raro os doentes pedirem para ver os filhos, apenas um ou dois doentes é que o fazia e quando pediam, viam-se ao portão”. 

 

A noção de contágio e as medidas de prevenção foram sofrendo alterações com o tempo. E neste sentido, D. Maria Emília explicou que desde o início notava que “o próprio doente parece que estava preparado para não tocar, agarrar… Retraía-se! Era como se já tivesse aquela mentalidade de não se aproximar, e o mesmo acontecia com os funcionários, connosco. Contudo “os doentes achavam sempre que não contagiavam os filhos…”

 

Além das visitas aos doentes, o Hospital recebia visitantes de diferentes proveniências. D. Maria Emília recorda-se da visita de Raoul Follereau, do Dr. Roland Chaussinand, chefe do Serviço de Lepra do Instituto Pasteur de Paris e dos vários grupos de estudantes quintanistas de medicina de Coimbra e do Porto. A este propósito recordou um episódio ocorrido com o Professor Bissaya Barreto: “Uma vez vieram os quintanistas de medicina da Universidade do Porto com um médico muito conhecido e quando passaram pela “escola de bordados de Castelo Branco” que era orientada pela D. Catarina, uma doente, o Professor Bissaya Barreto ofereceu uma colcha ao professor do Porto mas contrariamente ao que era habitual já não quis que fosse desinfetada… Era habitual, quando as doentes finalizavam um trabalho, encomendado ou para oferta, que fosse previamente ao sector de desinfeção no hospital, onde também desinfetavam a roupa dos doentes que tinham alta”.

 

O Hospital estava também ao serviço da comunidade local e D. Maria Emília recorda que “Todos os dias havia consulta interna para os doentes do hospital. Mas às sextas-feiras havia uma consulta aberta às pessoas da região para todo o tipo de doentes e todo o tipo de problemas”.


O modelo de assistência aos doentes de Hansen foi sofrendo alterações. Em 1976 pelo Decreto-Lei n.º 547 foi definido o regime de tratamento ambulatório como preferencial e em 1985 foi concedida alta coletiva aos doentes internos e externos. 

 

Sobre a saída de doentes, D. Maria Emília referiu: “A alta era dada com base nas condições clínicas, no resultado dos testes. Depois é que entrava o Serviço Social. Muitas vezes tínhamos que ir a casa da família convencer os filhos ou esposo/esposa a receber de volta o doente pois já tinha condições para regressar a casa… Mas era um internamento prolongado… E muitas vezes as famílias não os aceitavam, não os queriam de volta. Outras vezes também não tinham família, nem filhos, nem maridos/esposas ou eram solteiros/as… Ou não queriam ir embora, pois parecendo que não o hospital era um hotel para eles… As mulheres geralmente ficavam por serem casos sociais.” Mas “havia muitos doentes que não queriam ir com alta”.

 

Para auxiliar o doente na transição entre o hospital e a comunidade foi criado o Centro Recuperação de Espariz em Tábua. E sobre este, D. Maria Emília disse: “(…) era uma quinta grande onde os doentes com alta podiam desenvolver trabalho agrícola e ficar durante algum tempo até saírem definitivamente. A ideia era que o doente se adaptasse para depois ir embora com alta definitiva. Os doentes iam contrariados mas a casa era lindíssima, tinha tapeçarias no teto e tinham uma cozinheira, e quem tratasse da roupa deles. Tudo o que era excesso de produção ia para o hospital”.

 

 

Gradualmente, também a Creche e Preventório foram ficando com menos crianças. O fecho daquelas duas valências segundo D. Maria Emília “resultou das ideias do 25 abril… Chegaram à conclusão que ficava mais caro ao hospital. Na Creche já não havia Crianças, só no Preventório”. Por outro lado “alguns pais tinham ido embora com alta, deixado os filhos na instituição, sobretudo as raparigas. Tivemos orientações para que as crianças/jovens fossem devolvidas aos familiares. E, em alguns casos, o Serviço Social ajudou na obtenção de colocação de algumas das raparigas mais velhas no serviço doméstico de casas particulares…Mas muitas não possuíam formação a este nível. Alguns dos rapazes mais velhos já tinham saído e residiam no bairro dos funcionários onde trabalharam durante algum tempo numa tipografia que ali funcionava antes do 25 de abril”.

 

 

D. Maria Emília vai sabendo notícias de alguns doentes ou filhos pois ainda lhe telefonam de vez em quando. Guarda muitas memórias e recorda, como exemplo, a história de um rapaz que foi colocado num Seminário do Porto: “Era um rapaz extraordinário. Hoje é padre missionário em Moçambique, mas chegou a ficar em nossa casa quando vinha do seminário para visitar a sua mãe que continuou no Hospital. E a sua primeira missa nova foi feita na capela do Hospital”.
D. Maria Emília trabalhou trinta e sete anos no HCRP e quando se reformou o hospital ainda funcionava em pleno. 

 

 

Fazendo um balanço do tempo em que esteve ao serviço naquele hospital D. Maria Emília refere: “Eu ficava satisfeita que um caso ficasse resolvido. Gostava do trabalho, do serviço, do contacto com os doentes, das brigadas… Então quando era solteira era uma animação! Eu corria o país todo, de lés-a-lés, de norte a sul e foram muitos anos! As brigadas eram semanas e meses! Às vezes chegavam a mandar-nos pelo caminho-de-ferro as fichas dos doentes do próximo concelho e nós não vínhamos ao hospital”. 

 

 

E conclui dizendo: “Eu acho que durante os anos todos que trabalhei no Hospital Rovisco Pais, dei-me sempre bem com os doentes e funcionários… Não tenho mágoa nenhuma. Ainda hoje tenho doentes amigos e que ainda me falam… Que se lembram de mim! E todos os anos, pelo meu aniversário, o primeiro telefonema que recebo é de uma ex-doente. Gostei de tudo! Foi um tempo feliz para mim!

(Texto baseado em testemunho oral, em 2020, validado pela entrevistada. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge)