Mário, de miúdo a enfermeiro
As recordações do enfermeiro Mário Bexiga remontam ao tempo de criança em que residia perto do Hospital Colónia Rovisco Pais e furava a sebe para assistir ao cinema ao ar livre que era exibido para os doentes. Quis o destino que mais tarde viesse a ser enfermeiro naquela unidade de saúde. Entrou para o Hospital em 1970 e o primeiro local onde trabalhou foi o pavilhão dos infetocontagiosos, onde havia doentes que também tinham tuberculose.
Guarda milhares de memórias de mais de trinta anos de serviço naquele hospital. Partilha prontamente, algumas que vivenciou quando fazia Brigadas Médicas percorrendo longos itinerários no país para rastear e acompanhar doentes e familiares. Recorda situações de ameaças por parte de doentes e de como a equipa conseguia gerir estas situações de conflito obtendo depois a cooperação nos tratamentos, e construindo relações de confiança duradouras com os doentes tratados em regime ambulatório, através destas Brigadas.
Recorda que alguns doentes percorriam vários quilómetros em mulas para ir ao encontro das Brigadas Médicas, preferindo desta forma manter sigilo sobre a sua condição de saúde e evitar o estigma e a exclusão nas comunidades em que residiam ou trabalhavam.
Numa ocasião, quando o enfermeiro Mário incorporava uma equipa de Brigada Médica que fazia os distritos da Guarda e Castelo Branco foram intercetados por um senhor que se posicionou no meio da estrada, próximo de Mação. Pedindo descrição e anonimato, apresentou-se como empresário, e referiu que sangrava recorrentemente nas costas, sobretudo após o banho, e, por isso, receando ter lepra, solicitava que lhe fizessem colheita para análise. O enfermeiro Mário recolheu a amostra e entregou-a no laboratório do Hospital. Cumpriu o prometido e manteve sigilo sobre a identidade da pessoa em causa. O resultado revelou tratar-se de facto de doença de Hansen, por isso, o doente foi acompanhado e efetuou tratamento, sempre sem que se soubesse da sua condição, no local onde residia, conforme havia solicitado.
No Hospital, refere que os doentes tinham condições de vida muito superiores às que as famílias e a população portuguesa tinha na altura. Que existia um grande espírito de camaradagem, mesmo quando havia competições entre as três equipas de futebol de internados, ou nos concursos de jardins entre os diversos pavilhões.
O ambiente era de mútua aprendizagem quer para doentes quer para funcionários, havendo colegas de várias proveniências, até da Indonésia. Muitos doentes trabalhavam como auxiliares dos enfermeiros, outros na secretaria ou nas limpezas.
Havia restrições e regras mas tinha que se manter uma certa ordem e apesar da contestação que às vezes ia existindo, através de um inquérito que realizou em 1985, o Enfermeiro Mário concluiu que a maioria dos ex-doentes que permaneciam no Hospital reconheciam ter tido um impacto positivo a sua ida para o Hospital Colónia Rovisco Pais.
(Baseado em testemunho oral, em 2020. Texto validado pelo entrevistado. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge)