Mavilde, enfermeira de corpo e alma

A vida da Enf.ª Mavilde Melo está profundamente ligada ao Hospital Colónia Rovisco Pais (HCRP), pois este local faz parte das suas memórias e de vários membros da família que ali desenvolveram e desenvolvem atividades profissionais. Quando foi colocada no HCRP, a sua irmã Isabel, já trabalhava lá há cerca de cinco anos, também como enfermeira. 

 

Depois, conheceu ali o que viria a ser seu futuro marido tendo vivido no Bairro dos Funcionários durante oito anos, numa altura que coincidiu com a infância dos seus filhos, e recorda-se que “[…] as casas eram ótimas e o ambiente também. Aqui na Tocha, poucas casas havia como nós tínhamos. Havia casas de dois a quatro quartos. Cada uma possuía o seu jardim, tratado pelos jardineiros…Foi bom viver no bairro”.

 

Desfiando as memórias de uma vida profissional inteiramente ligada à enfermagem, a Enf.ª Mavilde começou por referir a formação que fez em Coimbra, para depois nos conduzir numa “viagem” pelos diferentes espaços de ação, dentro do amplo HCRP. 

 

Formou-se na Escola de Enfermagem Dr. Ângelo da Fonseca, quando ainda funcionava nos Hospitais da Universidade de Coimbra, na alta de Coimbra. Tirou o Curso de Auxiliares de Enfermagem em 1967 e mais tarde o Curso Geral de Enfermagem em 1976. 

 

Iniciou funções no HCRP no dia 1 de abril de 1967 como Auxiliar de Enfermagem. Já conhecia o ambiente e o tipo de doentes pelo que lhe ia sendo transmitido pela irmã. Na altura, o HCRP entendia que necessitava de enfermeiras em permanência na Creche e Preventório, mas havia dificuldade em conseguir pessoal. “Houve apenas uma colega que estava disposta a ir para lá, mas a família não deixou por causa do estigma da doença”. 

 

A Enf.ª Mavilde trabalhou na Creche e no Preventório até 1969. A equipa era permanente e as enfermeiras do hospital só podiam ir aos fim-de-semanas ou em caso de necessidade.
Para a Creche eram encaminhadas as crianças que nasciam no HCRP. Chegaram a ter treze bebés, com menos de um ano, em simultâneo, e tinham que cuidar deles e alimentá-los. Quando completavam um ano de idade mudavam para outra sala, e por aí em diante até à idade escolar, ou seja, por volta dos 6-7 anos, altura em que transitavam para o Preventório e passavam a frequentar a escola primária ali existente.

 

No Preventório encontravam-se crianças saudáveis que provinham do exterior do HCRP, e que ali eram colocadas quando os pais ficavam internados. As crianças novas ficavam numa camarata à parte, de quarentena, durante algum tempo. A idade era variável, por vezes havia crianças mais pequenas, com três ou quatro anos. 


Numa fase inicial, as crianças da Creche e do Preventório, recebiam as visitas dos pais no locutório, uma sala anexa à portaria. Mais tarde, quando o locutório passou a ser utilizado para armazém de artigos, recorda-se “[…] de passar e ver as crianças e respetivas mães, cá fora nos alpendres”.

 

No Preventório e na Creche, as enfermeiras tratavam dos bebés e das crianças, desenvolvendo todo o tipo de atividades de enfermagem pediátrica. “Quando eu fui para lá havia 120 crianças, não era brincadeira. Eles caiam, magoavam-se, havia a hora de fazer os pensos, dar gotas, vacinas…Era uma pediatria autêntica só não havia doenças graves, mas tínhamos tudo – cirurgias às amígdalas, otorrino, dentista…” relembra a Enf.ª Mavilde, acrescentando que iam lá os médicos do Hospital e que se recorda bem das consultas de clínica geral do Dr. Julião Pinto, que era um excelente médico, e do pediatria Dr. Santos Bessa.

 

Em 1972, a Enf.ª Mavilde pediu transferência para zona hospitalar para melhor conjugar horários e afazeres de esposa e mãe. Foi colocada no Núcleo Familiar nº 4 que era constituído por casinhas com jardim, onde residiam famílias de doentes, que sendo trabalhadores, desenvolviam atividades remuneradas para o hospital – eram jardineiros, pedreiros, carpinteiros, etc. No Núcleo Familiar a Enf.ª Mavilde ia acompanhando as famílias residentes e no seu gabinete tratava ferimentos, fazia pensos, administrava injeções e outra medicação, media temperaturas, entre outras tarefas. No período da tarde, realizavam-se atividades com as doentes ao ar-livre, tais como bordados e malhas. 

 

No que se refere à existência de atividades agrícolas e de uma escola no interior do HCRP, referiu que havia produção de leite, existindo uma vacaria e pocilgas com muitos porcos, bem como pomares e milheirais. A maioria das tarefas era assegurada por funcionários da lavoura, do próprio hospital, mas nas pocilgas também trabalhavam doentes. 


Sobre o trabalho desenvolvido pelos doentes, descreve que havia uma pequena casa onde funcionava a Secretaria de Doentes, e que se situava junto aos pavilhões que atualmente estão ocupados pela APPACDM – Associação Portuguesa de Pais e Amigos do Cidadão Deficiente Mental. Ali se realizava a contabilidade das horas que os doentes trabalhavam para que fossem pagas através das verbas do Hospital. O chefe desta Secretaria era também professor da Escola de adultos, existente no HCRP. 

 

Gradualmente as casas dos Núcleos Familiares foram ficando vazias. Os doentes tinham alta ou envelheciam, e nessa altura passavam a ter dificuldades de mobilidade ou necessitavam de cuidados continuados, por isso transitavam para o Hospital. 

 

Entretanto, em 1973, a Enf.ª Mavilde foi colocada no edifício do Hospital, e ali esteve muito tempo a trabalhar na sala de operações, onde se faziam intervenções cirúrgicas todas as semanas. A sua irmã também trabalhou lá durante muito tempo, e como possuía a especialização em enfermagem obstétrica, realizou diversos partos.

 

No edifício do Hospital, a Enf.ª Mavilde sentiu que “ […] a responsabilidade cresceu, mas as funções desempenhadas eram mais aliciantes…. A atividade clínica existente abrangia diversas especialidades médicas: dermatologia, oftalmologia, ortopedia, psiquiatria, ginecologia, obstetrícia, otorrinolaringologia, radiologia […]”. Dentre os médicos que ali trabalhavam, menciona o ortopedista Dr. Aguiar Melo, o radiologista Dr. Vítor Carvalheiro e o psiquiatra Dr. Silva Marques, que estiveram no Hospital até mais tarde. 

 

Sobre o que mais gostou na experiência profissional no HCRP, a Enf.ª Mavilde afirmou com grande entusiasmo:

“Do trabalho na área de cirurgia, gostava imenso…” – e descreveu “o magnífico bloco operatório” ali existente, com “sala toda forrada a mármore” “onde se realizavam intervenções de todo o tipo: tanto se podia fazer histerectomia, como uma operação a uma hérnia…era o que era necessário”. Porque, referiu: “quando vim para cá havia cerca de 900 doentes, ora em tantos doentes havia muitos problemas de saúde… Havia muitas operações aos estômago, muitas amputações…essa é que era horrível, não gostava nada, custavam-me.” Mencionou ainda a existência de “muitas cirurgias reconstrutivas nas quais o Dr. Veiga Vieira, que já tinha a especialidade de cirurgia plástica, tratava as úlceras das pernas, tirando tecidos de um lado para colocar nas feridas”. E acrescenta: “resultava quase sempre, sobretudo nos mais jovens, embora fosse um processo demorado”. E não se lembrou de intervenções ao rosto, mas recordou que uma ocasião “reconstituiram um nariz a um doente”. 

 

O Prof. Bissaya Barreto também operava lá e esteve pelo menos duas vezes em intervenções por ele realizadas. “Diziam que era muito exigente”. 

 

No edifício do Hospital, mencionou a existência do laboratório, no 1º andar, onde trabalhavam cerca de seis analistas e um auxiliar. A chefe chamava-se Dr.ª Fausta. Além das inúmeras análises aos doentes, realizavam também análises aos funcionários e aos respetivos filhos. A secção de fisioterapia funcionava no rés-do-chão, mas não teve muita atividade no seu tempo.
Os internamentos no Hospital eram motivados pelo tipo de lepra, pelas lesões e pelas condições em que viviam os portadores da doença. “No hospital havia doentes com vários tipos de lepra. Havia um tipo que era menos contagioso, mas muitos doentes ficavam mutilados e eles coitados não tinham condições, por isso iam para o HCRP. O que seria deles?” – mas “também havia, na região da Tocha, muitos portadores da doença que faziam as suas vidas cá fora e que nunca tiveram que ser internados”, elucida a Enf.ª Mavilde. A propósito desta realidade, a Enf.ª Mavilde, que por vezes ia em urgência buscar doentes para o internamento, recordou um dos episódios que vivenciou: “Uma vez fui incumbida de ir buscar uma doente a casa, na zona de Castelo Branco. Era domingo, não havia motoristas e por isso fui numa ambulância com o meu marido, que também era funcionário do HCRP. A casa dela era escavada numa rocha, vivia sozinha, e lá ninguém lhe tocava. Estava acamada e a roupa…coitadinha…era uma miséria. Chegámos com a doente ao hospital já estava a anoitecer – as colegas ainda lhe deram banho. Mas soube mais tarde, quando voltou ao serviço, que a doente tinha falecido.” e continua dizendo – “fomos a outros sítios e eram muito pobres as casas dos doentes…sem água e sem condições nenhumas e com aquela doença… essa foi uma das razões porque retiraram de casa muitos doentes.”

 

O tratamento da doença era feito com ampolas e comprimidos. “Mais tarde já havia o Rifadin e esse é que veio curar a lepra!” Antes disso, os doentes tomavam uns comprimidos, uma vez por dia, cuja finalidade pressupunha também que deixassem de ser contagiosos. “Regularmente eram colhidas amostras e ao fim de três análises negativas consecutivas é que podiam ter licença para ir a casa. O problema é que alguns descuidavam-se do tratamento cá fora, e por isso, voltavam a ser contagiosos”. Cada doente era diferente, e havia casos em que era mais difícil conseguir análises negativas. 

 

Sobre a existência de possíveis contágios aos funcionários a Enf.ª Mavilde referiu que “nunca nenhum funcionário apanhou a doença… Os funcionários da lavoura, por exemplo, comiam com os doentes e felizmente nunca houve contágio. Foi uma ideia errada, assim fosse agora o Covid-19, que muitas vezes nem se percebe se a pessoa está infetada. Na lepra, percebia-se logo o contágio, via-se no rosto e nas mãos e isso causava pavor.” 


No início, quando foi trabalhar para o hospital, o diretor instruiu-os que deviam abrir as portas com as batas. De facto, inicialmente havia mais cuidados: utilizavam as luvas e lavavam frequentemente as mãos com água e sabão azul. Mas, “com o tempo fomo-nos habituando e não era tão mau como parecia… Era tudo feito com pinças…e nem para mudar as doentes havia receios. Já não tinha problemas sobre isto.”

 

Do período em que esteve no Hospital guardou várias memórias dos doentes. Partilhou prontamente que: 

“Houve uma doente que me marcou muito! Era uma doente de 33 anos com problemas renais e na altura não havia diálise, nem transplantes como hoje. Fazia-se o que se podia. Tinha três filhos… Ainda hoje, muitas vezes, me lembro e rezo por eles. Lembro-me dela… acho que se chamava Odete, com três filhinhos à sua beira… Não era costume deixarem entrar os filhos para junto dos doentes, mas dessa vez o pai trazia-os e deixaram-nos ir despedir-se dela… Essa foi a parte que mais me chocou…tínhamos vários doentes que morriam com problemas renais, aquela marcou mais pela idade que tinha, e por ser mãe de três crianças. A morte dos doentes renais era terrível… Os problemas renais afetavam vários doentes e agravavam-se muito mais devido à medicação”.

 

Depois do 25 de Abril de 1974 saíram muitos doentes, e as perspetivas de que alguns edifícios fossem reutilizados para outras finalidades, foi motivando que se juntassem os doentes, mudando-os ora para o Asilo, ora para o Hospital. Entretanto muitos deles foram ficando mais idosos, alguns ficaram acamados e para o fim já nem havia consultas no Hospital. Os doentes iam a Coimbra.

 

A Enf.ª Mavilde aposentou-se em 2001. Além do HCRP, trabalhou ainda, em período de férias, em Centros de Saúde na Figueira da Foz, em Quiaios, Alhadas e Bom-sucesso, na Tocha e em Cantanhede. Neste domínio, conta que numa ocasião, houve uma visita da Ministra da Saúde, e pediram-lhe uma enfermeira para o Centro de Saúde da Tocha. Tendo sido ela indicada para o efeito criou o serviço de Saúde Materno Infantil no Centro de Saúde de Tocha. Mas, como conta, só aceitou mediante acordo de continuar a meio tempo no HCRP, pois “não queria deixar o Hospital”. 

 

A propósito desta forte ligação ao Hospital e das razões inerentes a Enf.ª Mavilde conta: 

“Gostava imenso de estar no Hospital, porque aí funcionava de maneira diferente, bastava ter a sala de operações que nos dava outra dimensão do que era a nossa enfermagem”. Ali “enriqueci mais a minha formação, o meu curso, do que um colega num outro hospital, numa só especialidade…bastava o facto de ter [no HCRP] todas as especialidades…Não trocava a minha experiência por a deles.” E acrescentou: “sempre gostei imenso da minha profissão e fiquei sempre muito ligada aos doentes. Agora já não vou lá porque me choca imenso…já há poucos doentes.”

 

 

(Texto baseado em testemunho oral, em 2020, validado pela entrevistada. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge)