Memórias do Dr. Santos Silva
O Dr. Vítor Santos Silva nasceu no ano em que o Hospital Colónia Rovisco Pais (HCRP) foi inaugurado e que o seu pai – Dr. Manuel dos Santos Silva – foi nomeado vogal da respetiva Comissão Instaladora (27-09-1947). Cresceu rodeado pela referência, mais ou menos evidente, da existência de um hospital destinado a tratar doentes de Hansen na Tocha.
Estes factos e a importância de conhecer melhor o primeiro diretor do HCRP, justificaram a pertinência desta entrevista onde se registassem memórias em torno daquela instituição e onde são fornecidos elementos para a reconstituição do percurso biográfico do Dr. Manuel dos Santos Silva figura de relevo na profilaxia e terapêutica da lepra em Portugal a quem coube a missão de dirigir a Leprosaria Nacional Rovisco Pais entre 1947 e 1958.
Iniciou-se esta entrevista pela reconstituição do percurso académico do Dr. Manuel dos Santos Silva através do pronto contributo do Dr. Vítor.
O Dr. Manuel dos Santos Silva era natural da Tocha, onde nasceu em 1906, era “Filho de família modesta, tendo sido mesmo um tio sacerdote quem lhe proporcionou os meios necessários, que decerto os pais não possuíam, para que pudesse prosseguir nos estudos. Concluído que fora o ensino primário, que frequentou na Escola de Cadima, o Dr. Manuel dos Santos Silva desde muito novo se revelou possuidor de uma capacidade de trabalho e de riquíssimos dotes de inteligência. E o primeiro reconhecimento público das suas elevadas qualidades intelectuais ocorreu no Liceu de Aveiro, onde fez todo o ensino secundário e onde, desenraizado da família, em meio desconhecido e sem quaisquer ajudas, conquistou não obstante, o prémio Anastácio Nicolau de Bettencourt, o único que então existia naquele estabelecimento de ensino e que era destinado a consagrar os alunos ali considerados distintos.” Seguiu para a Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra onde se formou em Medicina e “onde foi sempre aluno brilhante e muito querido e estimado entre os seus Colegas”.
Em 1931, o Dr. Manuel dos Santos Silva foi nomeado assistente naquela Faculdade na cadeira de Patologia Médica e em 1946 concluiu o doutoramento, com a dissertação intitulada As anemias dos cirróticos: estudo clínico e laboratorial (cobre e vitaminas) que obteve a “classificação de muito bom com distinção”. Nesse mesmo ano rumou ao Brasil com “o patrocínio do Instituto para a Alta Cultura e em missão oficial do Governo Português, (…) para estudar a organização da luta contra a lepra, tendo conhecido bem e frequentado os melhores centros de profilaxia, assistência e investigação leprológicas, hospitais e clínicas de dermatologia, nomeadamente nos Estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Baía e Pernambuco, tendo então assistido à Segunda Conferência Panamericana de Lepra, que teve lugar na cidade do Rio em Outubro daquele ano.”
Entre 1947 e 1950 desempenhou cargos de “Presidente do Conselho Regional de Coimbra da Ordem dos Médicos” e “vogal do Conselho Geral”.
A 27 de Setembro de 1947 foi nomeado vogal da Comissão Instaladora do HCRP “cabendo-lhe nesse âmbito do seu desempenho e depois como Diretor Clínico, [de que tomou posse em 15-11-1948) relevante papel na organização e montagem de todos os serviços e principal executor das atividades técnicas, quer dentro daquele estabelecimento hospitalar, quer fora dele, em todo o País. As aludidas funções vieram a findar em 18-07-1958, data em que tomou posse de Inspetor Clínico do Instituto de Assistência aos Leprosos.”
No percurso académico e profissional do primeiro diretor do HCRP, o Dr. Vítor sublinha também a intensa atividade científica, dizendo: “(…) professor, cientista e médico muito reconhecido e com larga experiência profissional, prosseguiu sempre muito ativo como preletor e moderador em todos os cursos de leprologia, que em anos sucessivos tiveram lugar entre 1960 e 1968 no Hospital Colónia Rovisco Pais.” Além destes, esteve presente nos mais importantes Congressos sobre a temática, nomeadamente no “3º Congresso Internacional de Leprologia, realizado em Havana” onde foi “eleito membro da Comissão de Assistência Social” (1948); no “6º Congresso Internacional de Leprologia, ocorrido em Madrid em 1953” onde foi eleito para “a Comissão de Terapêutica”; “em 1963, como bolseiro da Organização Mundial de Saúde, representou Portugal no 8º Congresso Internacional de Leprologia, realizado no Rio de Janeiro, sendo de novo eleito membro da Comissão de Terapêutica aproveitando o ensejo para o estudo das então mais recentes aquisições da ciência leprológica e dos novos métodos de profilaxia da lepra.” No âmbito destes eventos e não só teve oportunidade estar “em Espanha, em serviço oficial” e conhecer “a orgânica dos serviços leprológicos de Cuba”, bem como visitar os “Estados Unidos da América do Norte (…) e conhecer o funcionamento e os meios disponíveis para o combate à doença em hospitais, sanatórios e, de modo especial, na modelar e então única leprosaria daquele País, situada em Carville no Estado da Louisiania.”
Ao longo currículo descrito acrescenta-se a “vastíssima, apreciada e fecunda obra escrita, relacionada quer com trabalhos de investigação que realizou ou em que colaborou enquanto desenvolveu funções na Faculdade de Medicina de Coimbra, quer posteriormente como Director do Hospital Colónia Rovisco Pais e Inspector Clínico do Instituto de Assistência aos Leprosos (…).” Como dá nota o Dr. Vítor, a valiosa bibliografia produzida resulta de “inumeráveis acções, como colóquios, palestras, conferências em todo o País e lições a estudantes de Medicina e de cursos de aperfeiçoamento médico-sanitário na Faculdade de Medicina de Coimbra, no Instituto Ricardo Jorge, Sociedade de Geografia, etc.”
No tocante às memórias que o Dr. Vítor reteve, e que diretamente se relacionam com HCRP partilhou o seguinte:
“Desconheço as razões da sua ligação inicial à doença de Hansen (…). Eu ainda era menino de tenra idade quando o meu pai desempenhou o cargo de Director Clínico do Hospital Rovisco Pais e, por isso, não me lembro de haver tido comigo diálogos de interesse sobre o assunto. Recordo-me, contudo, das suas ausências frequentes em serviço por força daquele seu desempenho profissional, que o levavam, integrando equipas multidisciplinares, constituídas por outros médicos, técnicos de laboratório, assistentes sociais e administrativos, a percorrer o País. Lembro-me de outras vezes a sua ausência ser devida a idas a países estrangeiros, onde decorriam eventos ligados à leprologia. Não olvidei ainda a satisfação com que o via comprar em Coimbra no “Olímpio Medina” instrumentos musicais para satisfazer os pedidos que lhe eram formulados por vários doentes internados, que os sabiam tocar. E tenho também bem presente os seus cuidados quando, vindo do Hospital, chegava a casa, em ordem a prevenir o contágio com a família e amigos.”
Sobre a atividade do Hospital, o Dr. Vítor recordou que:
“(…) não me recordo de o meu pai haver partilhado comigo, então menino de tenra idade, detalhes sobra a sua actividade clínica ou terapêutica no Rovisco Pais, para além de umas breves referências, feitas já bem mais tarde, ao facto de algumas vezes serem enviados para aquele Hospital doentes, com o diagnóstico de lepra nervosa quando, depois de ali estudados, se verificava que afinal eram vítimas de outra doença, a paramiloidose. Já adolescente acompanhei-o também algumas vezes em conferências e palestras que proferiu já na qualidade de Inspector do Instituto de Assistência aos Leprosos, em diversos pontos do país, articuladamente com as Delegações de Saúde, sobre assuntos de lepra. (…) Lembro-me (…) mostrar-se ele sempre profundamente conhecedor e actualizado com todas as soluções mais modernas e avançadas que ao longo dos tempos foram sendo dadas às questões mais delicadas e complexas surgidas na luta contra a lepra, o que também não surpreende face não só à sua preparação académica, como também ao permanente contacto com os leprólogos e instituições mais eminentes a nível nacional e internacional, que se dedicavam ao estudo da doença de Hansen, designação mais tarde usada, para evitar estigmas ligados à inicial.”
Devido a um acidente, o Dr. Manuel dos Santos Silva ficou paraplégico em 1972 tendo falecido em 1985. O seu nome ficou para sempre ligado ao HCRP, ponto de partida no qual o Dr. Manuel dos Santos Silva “(…) iniciou e desenvolveu o frontal e vigoroso combate à lepra, sendo o seu principal orientador técnico e executor e quem mais divulgou conhecimentos leprológicos em Portugal.”, como relembra o Dr. Vítor. E acrescentando, refere ainda: “Depois de me haver jubilado, com a consequente maior disponibilidade de tempo, tive curiosidade de ler alguns dos estudos publicados por ele, não propriamente sobre a parte científica, mas aqueles para mim mais acessíveis e de maior interesse, relacionados com a origem do Hospital Rovisco Pais e as envolventes da história do início da luta contra a lepra no aludido estabelecimento de saúde.” Estas leituras, que o Dr. Vítor partilhou trouxeram-lhe respostas a algumas questões que ao longo do tempo foi formulando. Entre a bibliografia já consultada, menciona um artigo publicado na Revista Portuguesa da Doença de Hansen (vol. 1, nº 3, Setembro-Dezembro, 1962), intitulado “Hospital-Colónia Rovisco Pais: última leprosaria do continente português” da autoria do Dr. Manuel dos Santos Silva [PDF], onde foi colhendo aspetos sobre o percurso histórico da luta conta a lepra em Portugal, de que realçou o preocupação perante a doença e a sua propagação registada no Congresso Internacional de Medicina em Lisboa, em 1906, a posterior a nomeação de uma comissão para estudar a lepra em 1930, a proibição de que os doentes de lepra fossem internados nos Hospitais da Universidade de Coimbra em 1931, e a disponibilização de cinquenta a cinco vagas para estes doentes nos Hospitais Joaquim Urbano, no Porto, Hospital Civil de Lisboa e pavilhão Curry Cabral do Hospital do Rego “em condições menos próprias”. Sublinhando ainda a campanha “Acudamos aos leprosos!” dirigida pelo Professor Bissaya Barreto no Jornal A Saúde desde 1938.
O Dr. Vítor partilhou também aspetos que reteve da análise da “Lição que fez em Coimbra, em 9 de Dezembro de 1957, ao Curso de Aperfeiçoamento e Revisão da Faculdade de Medicina, em colaboração com a Ordem dos Médicos e a Direcção-Geral de Saúde, posteriormente publicada no Jornal do Médico, XXXV (784): 277-298, Fevereiro, 1958” cuja leitura lhe permitiu perceber melhor a posição do pai face aos novos meios terapêuticos ou a questões inerentes ao internamento dos doentes de Hansen. Desta forma, o Dr. Vítor sublinha que, neste artigo o Dr. Manuel dos Santos Silva se revelou “franca e prudentemente confiante com os novos meios terapêuticos que foram sendo descobertos à época e com base neles deixou ali enunciados os princípios da ciência leprológica mais recente”. De igual modo, o Dr. Vítor procurou “informar-se da necessidade da obrigatoriedade ou não do internamento dos doentes portadores da doença de Hansen” e verificou que a questão foi “à época motivo de preocupação, estudo e profunda reflexão”, destacando sobre o assunto, no referido artigo, os seguintes trechos: “O ideal seria dispormos de tratamentos que, pela boa tolerância, rapidez e infalibilidade da sua eficácia, resolvessem, satisfatoriamente, todos os casos, (…).
Todavia, assim não é, pois, com a melhor terapêutica de que actualmente dispomos – as sulfonas – os efeitos conseguidos não são imediatamente decisivos nem sempre definitivos. Daí o afã para a descoberta e ensaio de novas medicações (…). A verdade é que, mesmo com as sulfonas, os bons resultados levam certo tempo para se patentearem, sendo vulgar conseguir-se a negativização bacteriológica só depois de alguns anos de tratamento (…). No Hospital Rovisco Pais há internados com seis, oito e, até, dez anos de terapêutica devidamente ministrada e que – a despeito da sua espetacular melhoria clínica – continuam a revelar-se com análises bacteriológicas positivas e, portanto, contagiantes.” (…) Mas, conseguido o almejado branqueamento dos doentes e a sua negativação bacteriológica, esta não é definitiva e claudica, nomeadamente se for interrompida ou insuficiente a medicação.” “(…) vários hansenianos, que permaneceram, demoradamente, no Hospital Rovisco Pais e tiveram alta só após longo período de sucessivas ininterruptas análises negativas, revelaram, tempos depois, exames bacteriológicos francamente positivos.”
Sublinhou ainda que outro aspeto – “a ausência do espírito de previdência dos doentes” que seu pai explica da seguinte forma no referido artigo: “… tão depressa seja alcançada a melhoria clínica, desapareça o sofrimento e, se extingam nódulos, placas, úlceras e outros sintomas da moléstia, – os doentes, embora ainda contagiantes, julgam-se ou anunciam-se curados, reclamam a liberdade e, não tendo já evidentes sinais a denunciá-los, tornam-se então mais perigosos nas relações com os seus contactantes, que, incautos, deixam de ter cuidados profiláticos. Por isso, a esta fase de êxito com a moderna terapêutica já se tem chamado aspecto paradoxal da sulfonoterapia”.
Acrescenta ainda o Dr. Vítor: “ (…) o meu pai rejeitava, expressamente, o internamento indiscriminado de outras épocas, afirmando na mesma obra: “Sempre pensámos, defendemos e actuámos no sentido de ali (querendo referir-se ao Hospital Rovisco Pais) darem entrada apenas os doentes contagiantes que não ofereçam evidentes possibilidades, bem como insofismáveis garantias materiais e sociais de poderem tratar-se em suas casas.”
Ainda sobre o internamento, o Dr. Vítor prossegue referindo:
“(…) a favor do internamento de alguns dos doentes não se olvidavam as suas muito precárias condições económicas e habitacionais, que os impossibilitava de, permanecendo em suas casas, cumprir “… as mínimas regras de higiene e de tudo quanto exigiria a profilaxia da lepra …” por outro lado considerava-se ainda “(…) a necessidade de tratamento das intercorrências inerentes ou não à doença de Hansen e o benefício que para aqueles representava uma boa alimentação, a higiene e o repouso inerente a essa situação, garantidas com o internamento.”
E, num paralelismo entre a situação vivida então e a do Covid 19, o Dr. Vítor refere: “Curioso o facto de, decorridos mais de 6 dezenas de anos e em regime político bem diverso, a actual situação de pandemia nos vir a mostrar serem, afinal, o internamento e outras medidas também restritivas da liberdade dos doentes com doença altamente contagiosa as soluções a que as autoridades de saúde a nível nacional e internacional se vêem na necessidade de continuarem a adoptar.”
Salientando outra característica de seu pai, o Dr. Vitor destaca a “manifesta sensibilidade humana e solidariedade para com os doentes” demonstrada no seguinte apelo de seu pai: “…ao exigir-se de alguns hansenianos o sacrifício do internamento e consequente separação da família – sem dúvida no seu interesse, mas, em grande escala também, para beneficio da sociedade – se contrai para com eles uma dívida que exige e impõe facultar-lhes completa assistência médico-social. (…) seria extremamente útil que, entre as acções sociais a desenvolver a favor dos hansenianos, existisse um serviço de contencioso e se tornasse possível dispensá-los do pagamento das suas contribuições, taxa militar e outros encargos tributários, enquanto durasse o internamento (…). (…) apesar do internamento gratuito e remuneração pelo trabalho que executam no Hospital-Colónia, o problema dos doentes isolados e de alguns outros não tem boa solução enquanto não tiverem garantido um conveniente e regular amparo material…”
Desta viagem às memórias e pesquisas, o Dr. Vítor acrescentou ainda, em jeito de conclusão:
“(…) com instalações magníficas e primorosamente equipadas, com uma área tão ampla e adequada à ocupação dos doentes nas suas diferentes profissões, usufruindo de uma vida social intensa e completa, a que não faltava a recreativa e ocupacional e prodigalizando aos doentes “…tudo quanto a ciência médica em geral e a leprológica possam contar de mais actualizado…”, não surpreende que o Hospital-Colónia Rovisco Pais tenha sido considerado na época uma instituição grandiosa e modelar. Foi o que proclamaram com apreciações encomiásticas técnicos, estudiosos, personalidades ligadas à luta contra a lepra e diferentes entidades depois de o terem visitado e conhecedores da obra ali levada a cabo. Entre todas, permito-me transcrever as palavras ditas por Follereau, incansável protector e reabilitador dos hansenianos: “O mundo devia vir aprender a lição do Hospital-Colónia Rovisco Pais. Devia aproveitar esse exemplo para se guiar quanto à assistência que é preciso prestar-se aos leprosos. Já fiz 17 vezes a volta ao Globo nesta missão de pugnar por tudo quanto diga respeito ao bem estar dos leprosos. E nunca vi nada assim. O Hospital Rovisco Pais é a mais bela instalação da luta antileprosa que tenho encontrado no mundo”.
(Texto baseado em testemunho oral, em 2020, validado pelo entrevistado. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge)