Memórias e reflexões de Edite
Edite Melo foi para o Preventório do Hospital Colónia Rovisco Pais na Tocha (HCRP) com cerca de cinco anos. Até ali vivia na Pampilhosa com a avó, a mãe, o tio e a tia (irmãos de sua mãe) e os primos. A residência dos avós maternos era uma casa grande e farta de campo, com bois. O avô, já cego, havia falecido com diabetes.
Antes de ir para a Tocha, Edite recorda-se que “(…)a minha mãe às vezes escondi-me fora de casa da avó, com a ajuda de uma amiga.” Mas um dia “(…) veio um carro do HCRP buscar-nos. Deixou a minha mãe no Hospital e prosseguiu comigo – aos berros, porque a minha mãe não estava comigo – para o Preventório. Quando cheguei, apresentaram-me o meu irmão, o Hernâni, para ver se eu me acalmava, mas claro, não havia ligação… Só soube da sua existência naquele momento!”
Hernâni era cerca de sete anos mais velho que Edite e nascera no HCRP num internamento anterior de sua mãe. Edite não se lembra de com ele conviver no tempo em que esteve no Preventório, até porque, pouco tempo depois, ele foi para a Escola Profissional em Semide.
A mãe também se chamava Edite e formara-se na Escola de Enfermagem Dr. Ângelo da Fonseca, em Coimbra, chegando a trabalhar nos antigos Hospitais da Universidade de Coimbra. Edite ouviu dizer que a mãe “volta e meia fugia do HCRP, que andavam sempre à procura dela e não a deixavam exercer a profissão. Tanto que o Dr. Abel Lindo, médico aqui da Pampilhosa, dizia que não podia trabalhar com ela porque vinham-na buscar para a Tocha.” Igualmente soube que a mãe “(…) fugia para a Marinha Grande” e Edite supõe que “ela também ali trabalhara, ou que o seu pai poderia ser de lá. Mas não faz ideia! Também nunca soube se ela e o seu irmão eram filhos da mesma relação, porque a mãe era solteira e não lhe contou.”
Ao descrever a progenitora a voz de Edite transparece a saudade e o carinho que ainda nutre por ela: “(…) ai, a minha mãe… A minha mãe era muito bonita! Na Pampilhosa toda a gente diz que era a rapariga mais bonita! Vestia muito bem, andava sempre de chapéu e de luvas. Era uma pessoa muito doce. Aqui na terra toda a gente gostava dela. Ela era parteira, fazia os partos e não levava dinheiro, por isso as pessoas davam-lhe batatas ou uma abóbora… As raparigas da minha idade dizem-me que ela lhes furava as orelhas com uma agulha e linha.”
Já na Tocha, Edite sentia que a mãe “estava sempre mortinha por me ver.” Escrevia-lhe ou mandava recados pelas enfermeiras do Hospital, mas Edite recorda, com amargura que “a diretora chegava ao refeitório e dizia: – Hoje há correio! Mas lia-nos apenas o que lhe interessava e não nos dava a correspondência.”
Quando iam à portaria do hospital “diziam-nos para nos portarmos bem” mas quando eu lá chegava chorava sempre “(…) assim que via a minha mãe não conseguia controlar-me. Depois a minha mãe comprava fruta, bolachas baunilhas e bananas para eu comer…mas essas coisas não me chegava à mão.”
Nestes encontros, Edite revela ainda que a entristecia “não poder ter contacto direto com a mãe, por causa do vidro que as separava” e “não poder dizer que não gostava de lá estar, pois eu não estava à vontade para conversar e contar o dia-a-dia… sentia-me sempre vigiada.” Em todas estas visitas a mãe dava-lhe esperança de que iria para casa e dizia: “ Já falta pouco!” A avó Justina,“(…) que também era muito minha amiga, também me dizia: “A tua mãe vai ficar bem e vai levar-te!” Edite “ficava sempre ansiosa com aquelas palavras…”
Mas em 1971, quando tinha nove anos, a mãe faleceu e até hoje não sabe o que realmente aconteceu. Uma das suas tias disse-lhe que: “Ela não comia, tinha muitas artroses nas mãos, que entretanto tinham ficado tolhidas…e que pensa que terá sido uma pneumonia…”
Edite refere que no Hospital “(…) quando alguém morria, não se ia ao funeral. Mas quando a minha mãe faleceu eu tranquei-me e disse que não saia de lá se não me deixassem ir. Disse que fugia e ameacei que me matava! A diretora acabou por me deixar ir ao funeral. Mandou apanhar umas flores, uma espécie de pequenos malmequeres e uns fetos do campo, fizeram um ramo e eu fui. Mas não consegui olhar para o rosto da minha mãe…”
Sensivelmente três anos depois a avó, que entretanto também fora internada no Hospital, também faleceu. Edite recorda: ”Foi em setembro e eu estava na Colónia de Férias da Gala (…) só passado algum tempo quando comecei a sentir falta das visitas e perguntei é que me disseram a verdade… Fiquei muito triste!”
Edite permaneceu no Preventório até fechar, ou seja, até pouco tempo depois do 25 de abril de 1974. Da sua vivência no Preventório recorda momentos bons mas “(…) sente que não fui feliz!” Gostava dos jardins e da estufa, “que eram bonitos”, da “alimentação, que era ótima.” Recorda com saudade que quando era mais pequena, no recreio, passava o tempo a brincar e a trepar aos cedros enquanto as vigilantes ouviam a radionovela – Maria.
A partir dos doze anos começou a aprender e a participar nas tarefas domésticas – a fazer as camas, a engomar, a estender a roupa, a esfregar e encerar o chão e a lavar a loiça. As tarefas eram feitas em grupo e Edite confessa que adorava lavar a loiça porque “(…) as pias eram grandes e nós molhávamo-nos todas…era uma brincadeira e uma alegria!” Embora se defina como uma criança triste tinha muitas amigas e sentiu muita “mágoa” por não ter tido oportunidade de continuar alguns daqueles laços após a saída. Menciona igualmente que gostaria de ter fotografias daqueles tempos.
Das funcionárias, Edite guarda boas recordações das costureiras, da cozinheira e das enfermeiras. Segundo ela: “Era o único pessoal que ali era bom. As costureiras davam-me selos para escrever ao meu irmão, quando ele estava em Semide e ele escrevia-me também…Mas depois, não sei como era, as cartas nem sempre apareciam…” Descreve que “as vigilantes eram bruscas a falar” e “(…) aprenderam todas a mesma coisa… eu não sentia carinho. E se eu chorasse chamavam-me mariquinhas!” Refere a existência de castigos e de reprimendas e recorda, que pouco tempo depois de lá ter chegado, “(…) estava a brincar no baloiço e disse um palavrão. Eu não podia ter dito aquilo! Mas eu estava habituada a estar com a minha avó e com os meus primos…Lembro-me perfeitamente de me dizerem para não voltar a dizer aquela asneira, que era muito grande… Mas eu não tinha noção…Mesmo assim levei uma malha.”
Também não guarda boas recordações de um jogo que faziam a seguir ao almoço – a roda do silêncio. “Faziam duas filas de crianças de cada lado, a vigilante ficava ao meio. Depois pediam-nos para cantar ou fazer outras brincadeiras, mas não podíamos falar ou rir se nos dissessem que tínhamos que fazer silêncio. Quando nos descuidávamos, era um problema!”
Relativamente à Escola, Edite confessou: “(…) detestei a escola primária, que era lá dentro. A professora era só reguadas! E só de entrar na sala, tremia logo. Uma vez, eu fiquei lá a estudar tabuada até à noite. Aprendi-a, a cantar, mas depois se me perguntassem isoladamente eu já não sabia…A escola marcou-me muito pela negativa, foi dolorosa e difícil!” Depois fez o exame e foi para o ciclo em Cantanhede, e posteriormente para a Figueira da Foz.
Aos dezasseis “(…) começou a dizer-se que o Preventório ia fechar.” Edite foi entregue ao tio Manuel, que era seu tutor desde que a mãe falecera. Mas Edite não tinha contacto com os tios e por isso “quase não os conhecia.” O tio Manuel também tinha estado internado no HCRP e no tempo em que Edite esteve em sua casa recorda-se “(…) de que recebia enfermeiros do Hospital, que ainda o acompanhavam. E “(…) do Hospital, davam-lhe um subsídio de 100$00 para eu continuar a estudar, mas eu não quis!”
O irmão de Edite já lá estava, pois a Escola Profissional de Semide também encerrara.
Na casa dos tios, percebeu que a tia não gostava dela, e sabia que ela não se dava com a mãe. Na perspetiva de Edite, ela tinha sido “imposta ali á minha tia, sem ela querer…E, embora sentisse que o meu tio gostava de mim…Sentia-me maltratada, acabando por ser ali uma criada – fazia as refeições para os primos, apanhava comer para os bois…” Por esse motivo arranjou trabalho como empregada interna em Coimbra, onde esteve até se casar, aos 25 anos. Desse tempo recorda que: “- Eram pessoas ótimas e devo-lhes muito…Foram a minha salvação!”
Por sua vez, o irmão, que ajudava o tio nas terras “(…) também fez a vida dele e casou-se. E quando eu tinha folga ia para casa dele. Infelizmente, acabou por falecer cedo, num acidente, deixando três filhos.”
Após a saída do Preventório, Edite tentou, várias vezes, obter os números de telefone e endereços das companheiras e amigas junto das assistentes sociais, mas “elas diziam que não podiam facultar-lhos. Tinha tantos amigos, perdi tudo e fiquei sem ninguém!”
Os primeiros anos após a saída do Preventório, Edite sentia-se perdida: “Saímos dali sem nada… o pouco que nos podiam dar, que era os laços, não deixaram! Acho que não se interessaram mais por nós. Quando vim para o mundo exterior eu não sabia o que era dinheiro, tudo me espantava, estava de tal maneira fechada, que, cá fora, percebi que tudo era muito difícil e tudo me fazia muita impressão! A maneira como eu vias as pessoas, as raparigas iam para as matineés… ouviam música com liberdade… Eu achava aquilo diferente… Achei o mundo e a vida cá fora muito estranha!”
Depois Edite seguiu a sua vida e constituiu família. Diz: “(…) enterrei o passado, tentei não falar muito disto e esquecer o Rovisco Pais durante anos.” Em diversas ocasiões passou à porta do Hospital, a caminho da praia, mas não entrou. E, “já em adulta estive várias vezes à porta do cemitério da Tocha, onde sepultaram a minha mãe e a minha avó e não consegui lá entrar… Fico com um aperto muito grande… E nem sei onde era a campa delas!”
Além da mãe e da avó, vários elementos da família foram internados ou acompanhados pelo HCRP. Os seus avós tiveram mais três filhos e uma filha. Todos os filhos, do sexo masculino, estiveram internados naquele hospital e quase todos estiveram depois emigrados na França, após a saída.
O seu tio Augusto casou no HCRP e conheceu a senhora que “veio a ser sua tia”, quando também lá estava internada. “E esta tia é a única que ainda é viva, e que se nota que teve a doença, no rosto e nos pés. Os outros diziam sempre que não tinham a doença, e não apresentavam marcas na pele. Apenas um deles tinha as mãos tolhidas.”
Neste percurso de vida, apesar de “fazer por esquecer” Edite foi querendo saber mais sobre a família e a mãe numa tentativa de preencher o vazio criado por precocemente ter perdido a mãe. Questionou várias vezes os tios sobre o que viveram no HCRP e pediu que lhe falassem sobre a sua mãe, mas com tristeza diz: “(…) não contam coisas com pormenor.” A tia lembra-se de ter estado com a mãe de Edite no Hospital e de saírem de bicicleta pelos pinhais, quando conseguiam licença para ir à terra. Menciona que aprendeu lá muita coisa, como tricotar meias e fazer rendas de bilros. Mas não gosta de falar sobre o assunto. E quando saiu a mãe de Edite ainda lá ficou.”
Edite acrescenta que a mãe também tinha muito jeito para bordados e malhas e que ela ainda conserva “um casaco feito por ela, que lhe oferecera e uma carta que a mãe escreveu ao diretor a pedir para ficar comigo!” Explica que “(…) tudo o que era dela e que estava no seu quarto em casa dos pais foi vendido por uma outra tia… Fiquei sem mais recordações da minha mãe!”
Agora que volta a falar sobre o assunto, e recorda o passado, dá consigo de novo a questionar-se sobre vários aspetos, acabando por partilhar algumas reflexões com que tenta dar resposta às suas interrogações. Algo que gostaria de perceber é razão de apenas ela e o irmão terem ido para o Preventório?
Sabe que alguns primos, filhos dos tios que também estiveram internados, ficaram com as outras avós e que estes tios ficaram menos tempo no hospital. E numa tentativa de resposta avança: “talvez por a minha mãe ser solteira… A minha mãe e a minha avó nunca me disseram porque fomos para lá… E se eu não fosse, a quem é que ela me deixava? Porque a minha avó também foi para o Hospital, pouco tempo depois… Talvez a minha mãe não quisesse que eu ficasse com meus os tios…Talvez a minha mãe pensasse que eu lá ficava melhor…Não sei, não faço ideia! Os meus tios trabalhavam no campo e tinham muitos rapazes… Ela devia pensar que eu estava bem… E, eu também não podia falar… Devia, certamente, estar convencida de que eu estava bem!”
Edite abordou algumas vezes o Padre Afonso para acrescentar informações à sua história, mas a resposta era idêntica: “- Não há nada para falar.” Sobre a relutância que sempre verificou na partilha de vivências, Edite acredita que existe “Um vazio no falar… Como se houvesse algo a esconder…”
Na sua opinião continua a existir “estigma” sendo isso visível, por exemplo, no facto de verificar que ainda tem “um título”, ainda lhe dizem: “- Tu és filha da enfermeira da Edite, que estava no Rovisco Pais dos leprosos…” E o mesmo acontece relativamente à tia.
Nesta reflexão, Edite prossegue, partilhando: “(…) pois por muito que não se queira… O rótulo está lá sempre! As pessoas e os filhos tentam esconder. E, na sua perspetiva, é por isso que quando se aborda o assunto respondem: “- Isso não é para falar… Eu não quero saber nada disso! E tudo o que era falar sobre o Hospital Rovisco Pais… Não era para se falar! Na casa do tio não se podiam falar. Todos os familiares diziam que não tinham a doença, negavam sempre, afirmando: – Eu não sinto nada eles é que dizem que eu tenho! No trabalho, não podiam saber que tinham aquela doença. E escondiam… Também, por causa dos filhos!” Edite acredita que é por causa disto que não sabe a maior parte das coisas, mas ainda lhe custa “não saber quase nada da minha mãe…”
Em 2019, quase a completar seis décadas de idade, Edite voltou ao Preventório acompanhada por vários companheiros de infância, que entretanto reencontrou. Foi a primeira vez, desde que saiu. Nessa ocasião, souberam da iniciativa de recuperação do património do antigo Hospital e solicitaram o acesso aos arquivos na esperança de em breve saberem mais sobre o seu percurso e o dos seus antepassados.
Desta visita ao Preventório partilhou o seguinte:
“Eu cheguei ali…Vi aquilo tão diferente… Torna-se esquisito, mas tive saudades do que aquilo era. De como era bonito! A minha sensação é que aquilo também me pertence, que tenho ali algo, que é um bocadinho meu… Era ali o meu quarto… Eu sei onde era o refeitório, a lavandaria, reconheço todos os cantinhos, embora esteja diferente, olho e vejo o antigo e não vejo o moderno. E comentou com os colegas – aqui falta aquela roseira, e apontou outros pormenores… Senti tudo aquilo, fechei os olhos e vi tudo como era quando lá vivia e voltei a recordar aquilo, por dentro e por fora… Nesse momento percebi que esqueci o resto das coisas … o tempo tinha-as levado…”
(Texto baseado em testemunho oral, em 2020, validado pela entrevistada. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge)