Natália e a Creche
Natália Dias Costa nasceu em 1937 em Lemede, no concelho de Cantanhede. Era filha de Manuel, taberneiro e barbeiro, e de Maria de Jesus, e teve quatro irmãs e dois irmãos. Contou-nos que começou a trabalhar cedo na lavoura, nas terras que os pais arrendavam: “Trabalhávamos sempre. Os nossos pais não nos davam folga. Com enxada, ou nos poços a puxar água, com vacas e engenho, ou com baldes na cegonha ou picota. Também íamos à lenha aos pinhais…. Foi duro!”
Contou que naquele tempo “a barba dos homens era paga ao ano, com sacas de milho. Mas dava fartura para a minha mãe fazer broa. Nós atravessamos a guerra e era tudo racionado, açúcar e arroz. Só podíamos comprar um quarto de quilo!”
As raparigas iam à escola só até aprenderem a ler, e D. Natália só fez até à terceira classe porque “os pais achavam que os rapazes é que precisavam da quarta classe. Só fiz o exame da quarta classe com 23 anos, e foi um irmão que me habilitou.”
Estávamos em 1960, D. Natália queria sair da lavoura e foi trabalhar para a Creche no Hospital Colónia Rovisco Pais. Recorda-se que foi com o pai no autocarro até à Tocha e que quando ali chegou não sabia o que lhe haviam reservado: “Foi a primeira vez que trabalhei, antes andava no campo, mas também não queria muito trabalhar no campo, era um trabalho difícil e então, fui experimentar outra coisa. Logo na portaria disseram-me que a funcionária que tinha estado mais tempo, fora oito meses. Por isso, pensei: isto não deve ser coisa boa que está aqui guardada para mim…fiquei de pé a traz! E quando lá cheguei mandaram-me para a cozinha. Foi uma surpresa muito desagradável! Guardaram aquele lugar (de cozinheira) para mim e eu nunca tinha cozinhado.”
D. Natália contou que, na Creche, havia criancinhas até aos três anos, filhas de doentes que iam para ali, logo após o nascimento. As instalações eram boas, as crianças pareciam alegres e eram muito acompanhadas durante o dia. Referiu que, naquela altura, existiam cerca de 30 crianças e 10 funcionárias. Ela tinha que assegurar a cozinha: “era muito trabalho, porque numa situação destas uma pessoa não pára – era os pequenos almoços, as loiças, e depois o almoço, e muita loiça… E eu não parava até ficar sem unhas, que me fazia uma diferença tão grande! E não podia sentar-me. A cozinha era dentro da Creche e só estava eu. Havia uma menina boa que passeava as crianças e que me dava uma ajudinha, a pôr a mesa e a levantar, por exemplo.” Dos pratos que cozinhou, D. Natália recorda-se bem, de uma perna de porco grande que era assada no forno apenas com umas pingas de vinagre e que era bastante saborosa.
Tinha pouca convivência com as crianças, como disse: “não era o meu trabalho, antes fosse, seria mais agradável, mas também não tinha os estudos para isso.”
À noite, D. Natália, não conseguia dormir, pois o seu quarto ficava no salão do berçário e as crianças faziam barulho: “E eu acordava, ia junto delas, mas não podia fazer nada, porque elas precisavam de mudar de fralda… Não sei como era naquele tempo, mas não havia tanta vigilância aos bebés durante a noite.”
D. Natália esteve pouco tempo na Creche: “Estive a trabalhar na Creche apenas dois meses. Quando disse que ia embora, fui chamada ao gabinete para explicar as razões, mas eu não podia dizer que era a D. Maria Luísa que dava mau ambiente. Por isso, tive que inventar, e dizer que era para ajudar a minha mãe. Eu queria era ir-me embora porque não aguentava, de certa forma não me adaptei. Dei-me mal. É que, quando a D. Maria Luísa entrava eu chorava sempre. Tinha medo daquela senhora. Ela ia para a cozinha passava o dedo pela loiça, peça por peça, para ver se estava bem lavada. A sua personalidade e exigência foi o motivo que levou muitas pessoas a permanecer pouco tempo. E foi a razão de me ir embora, apesar da senhora me estar a prometer que me colocava como costureira, eu não me queixei da cozinha e não aceitei. Acho que, no fundo, ela sabia que nenhuma lá queria estar porque era um trabalho muito duro para uma pessoa apenas.”
Antes de ir trabalhar para o Hospital já ouvia falar que tinha cerca de 800 doentes e até conhecia pessoas que lá estavam: “Vilamar, por exemplo. Estavam lá dois irmãos e um, com esposa. Ainda fui madrinha de casamento de um deles. Era uma doença que afetava a pele, muito esquisita. Foi um milagre terem acabado com essa doença.”
Quando foi trabalhar para a Creche, D. Natália tinha um namorado e contou-nos “foi ele que me arranjou o emprego e eu fiquei um pouco triste, pensei: ora se me arranjasses, mas é o casamento!” Confessa que não se chateou com ele, e embora nunca tenham casado, manteve sempre uma relação: “Ele era um pouco mulherengo, mas eu era apaixonada por ele. E ele por várias. Chamava-se António, era músico e isso atraia-me um bocado. Fazia bailes formidáveis. Eu dançava, mas ele dizia-me para não dançar sempre com o mesmo. Ficámos sempre ligados. Tivemos uma filha, mas tive o azar de dar uma queda no meio da estrada, com 38 semanas de gestação. Passeávamos e íamos a muitas festas, fui muito feliz e foi sempre meu amigo até falecer com 98 anos.”
Após a passagem pela Creche voltou para casa dos meus pais. Mas 1961 a vida de D. Natália ganhou outro rumo, como nos contou: “havia uma família em Lemede que se dedicava à costura. Nessa altura foram para Lisboa instalar um atelier e convidaram-me. Eu fui em 1963, já tinha umas luzes de costura que apreendera com a minha irmã. Tinham muitas clientes e a costura em Lisboa era outra coisa. Foi aí que tive mais conhecimentos e depois de já de estar por dentro do assunto vim para Lemede em 1965. Comecei logo a fazer vestidos de noiva e todo o tipo de roupa. Tenho muitas fotografias com as noivas para quem fiz o vestido. Eu tinha empregadas e pagava ao dia e aprendizes que me pagavam a mim!” D. Natália chegou a costurar para famílias em Coimbra, Lisboa e Monte Real e disse com entusiasmo “Tive uma vida de costura que ninguém imagina, muito intensa! Cheguei a costurar para algumas famílias até à quarta geração. Também apendi a fazer bordados durante três meses e do curso resultou uma exposição na Legião Portuguesa em Cantanhede. Empenhei-me na organização do Rancho Infantil de Lemede e recordo-me de bordar a bandeira para eles. Gostava de ver os meninos a dançar!”
Texto baseado em testemunho oral, em 2022. Validado pela entrevistada. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge