Olinda. Uma década, muitas memórias
Olinda* vivia algures na Serra de Montemuro, distrito de Viseu. O pai tinha “a doença” desde os 18 anos, segundo contava “deitou-se na erva verde, depois passou-lhe a sombra e ficou tolhido das mãos”. Mas só quando o filho pedira licença na tropa para ir cuidar dele é que souberam da existência do Hospital Colónia Rovisco Pais (HCRP).
Ela, os seus irmãos, a mãe e o pai eram seguidos desde então por uma “junta médica” ” que anualmente ocorriam na sede do concelho. Quando iniciaram, Olinda era casada, e já tinha um filho. Mas houve um ano, que o marido se encontrava ausente, e Olinda acabou por faltar à junta médica. A restante família compareceu e a mãe acabou por referir que Olinda tinha “aparecido com umas manchas”. Na sequência disto, Olinda ficou notificada a comparecer em outra data, altura em que foi examinada e em que lhe fizeram uma biópsia na nádega. Cerca de doze dias depois foi visitada, em sua casa, por uma Brigada. Nessa ocasião, foi informada pela funcionária do HCRP que os testes tinham acusado “a doença” e por isso, deveria acompanhá-los de imediato para ser internada no Hospital Colónia Rovisco Pais, na Tocha.
Olinda recorda-se que estavam em meados de março de 1964, e chovia intensamente. Tinha acabado de amassar o pão e o forno a lenha já estava acesso. Nessa altura, contava 38 anos, e tinha cinco filhos, o mais novo com oito meses, ainda era amamentado. A sogra havia falecido há dias, e Olinda não acreditava que o marido pudesse cuidar dos filhos na sua ausência, por isso, disse à assistente social que não iria sem os levar. Os elementos da brigada, inicialmente relutantes, acabaram por concordar e nesse mesmo dia ela e os filhos foram conduzidos na carrinha do hospital até à Tocha. Ao final do dia, quando chegaram ao destino, as crianças foram encaminhadas para o Preventório e Olinda para o Hospital. Ao recordar este dia, Olinda refere: “estragaram a minha vidinha toda, porque a minha vida estava organizada e depois o meu marido não conseguiu zelar pelo que era nosso”.
Entretanto, para poder visitar Olinda e os filhos, o marido acabou por arranjar emprego na fábrica da Vista Alegre, em Ílhavo e instalou-se na zona, onde residia uma das suas irmãs. Olinda, por sua vez, instalada num dos pavilhões do HCRP ia ver os filhos à portaria sempre que fazia o pedido. A primeira vez que os viu, eles estavam “lá dentro por trás de uns vidros e nem nós os ouvíamos, nem eles nos ouviam”. Confessa que tinha saudades de pegar nos meninos, de os ter consigo, que “tinha pena deles, claro, mas não podia chegar à beira deles, nem nada…Veja lá a tristeza que eu tinha. Mas as pessoas animavam-me”. Na fase final da sua estadia no HCRP já visitava os filhos na portaria, “sem ser através do vidro”.
Passado algum tempo, Olinda acabou por conseguir autorização para ir de licença a casa, mas quando lá chegou “tinha tudo desmoronado e não havia nada das portas para dentro”. Nessa mesma altura, o marido adoecera com tuberculose, e foi internado em Viseu. Estes contratempos acabaram por fazer com que Olinda não regressasse ao HCRP na data prevista pela licença e por isso o hospital acabou por enviar alguém à sua procura. Apesar de ter o marido doente teve que regressar ao HCRP, deixando-o ao cuidado da irmã, enquanto aguardavam que fosse chamado para o Sanatório do Caramulo. Como consequência do seu atraso, Olinda foi “condenada” a passar vinte dias na “cadeia”. Situada no pavilhão 9 do HCRP, esta cadeia não tinha grades mas as janelas eram muito altas e o tempo que lá passou pareceu-lhe uma eternidade. Valia-lhe a visita diária da Irmã Margarida, que à hora do recreio conversava com ela na galeria.
Olinda sentia-se triste, mas apesar de saber que não havia muros, mas sim sebes com rede, e guardas “de pau” acabou por prosseguir o seu dia-a-dia, como podia, após este episódio. Continuou a solicitar licença para visitar o marido, e a fazer o pedido para ver os filhos na portaria, e este nunca lhe foi negado.



Acabou por fazer amizades com as Irmãs Margarida, Marta e Maria do Rosário. Também mantinha bom relacionamento com as enfermeiras, que lhe “encomendavam” meias e casaquinhos de lã.
À exceção de uma Irmã assistente, que quando a ia visitar “apanhava as saias todas para não chegar com elas às paredes pois tinham medo que a doença lhe pegasse à saia, os outros não tinham nojo de mim”. Refere mesmo: “Não tenho assim muitas queixas de lá, do pessoal de lá. Nunca me trataram lá mal”. Embora se recorde que havia acontecimentos tristes, como doentes que se suicidaram, refere que lá dentro também havia momentos festivos: “Iam lá jogar à bola, e no asilo onde estavam crianças doentes faziam algumas festas e num palco que estava sempre armado ia lá tocar um grupo chamado “Os Elite”. No Natal todos iam à missa do galo, e depois comiam rabanadas, filhoses e outros doces no refeitório, que podiam levar depois para as camaratas. Era tudo feito pelas Irmãs, com o azeite que sobrava do ano anterior.
Relativamente aos sintomas da doença e ao tratamento, Olinda descreve alguns comentários que ouvia das Irmãs e de alguns médicos que a levavam a acreditar que não tinha “a doença” e que o seu internamento seria uma espécie de consequência por ter faltado à junta médica. Conta que uma das Irmãs aconselhava-a mesmo a não entrar na sala de pensos para não se contagiar e refere que um dos médicos lhe disse: “A senhora não foi à junta médica com o seu pai, mas agora estará aqui o tempo que for necessário”. Guarda ainda nas suas memórias, um episódio ocorrido anos mais tarde numa consulta, na qual o médico lhe perguntou: “o que está a fazer aqui neste hospital se não tem a doença?”
Olinda não apresentava sinais como os outros doentes, “Não tinha chagas, nem estava tolhida…nada!” Não era portadora do tipo mais maligno de lepra. Os sintomas restringiam-se à falta de sensibilidade, sobretudo ao calor e uma espécie de lesões nos cotovelos, que pareciam “escarapelar.”
A dada altura, vendo que alguns doentes eram internados por pouco tempo, e acreditando ser possível obter alta mais rapidamente, o marido ainda pediu a interferência de um padre influente para que Olinda e os filhos regressassem a casa, mas não conseguiu o resultado pretendido.
Durante a sua permanência no HCRP, Olinda recorda-se que o tratamento consistia na toma de comprimidos, primeiro em dose de 25 mg e depois de 50 mg e, por isso, não compreendia porque não podia fazer o tratamento sem estar internada. Mais tarde, quando saiu do hospital deram-lhe alguns comprimidos para tomar em casa… e refere: “aquilo quando colocado na terra nada nascia à volta…”
Mas de fato, até 1990, recebeu visitas das “Brigadas” que recolhiam amostras para análise. Após aquela data, continuou a ser seguida por um enfermeiro do Centro de Saúde da área de residência, que só deixou de efetuar a visita domiciliária e a recolha de amostras para análise há cerca de três anos.
No HCRP, sempre que podia, trabalhava nas limpezas dos pavilhões. Recebia 10 tostões à hora e o dinheiro ia para a secretaria. Quando o queriam receber tinham que fazer uma requisição que autorizava um familiar a levantar a quantia na portaria. Pois como explicou: “nós não tínhamos ordem de ter lá um tostão para nada. O marido quando lá ia é que levantava o dinheiro na portaria. A primeira vez para ele comer, não estava a trabalhar, não tinha.”
Olinda reconhece que esteve dez anos no Hospital mas acabou por usufruir de muitas licenças para visitar o marido doente, conseguindo prorrogar o tempo de grande parte destas ausências do hospital por via dos atestados que a junta de freguesia e o Regedor lhe passavam.
No tempo em que esteve no Hospital teve dois filhos e “ […] mal nasceram levaram-nos para a creche e lá é que olhavam por eles logo de pequeninos”. Um dos meninos acabou por falecer com vinte e um dias de vida. Deram permissão a Olinda para ir até à portaria ver quando o levaram no pequeno caixão branco, para o cemitério da Tocha.

A dada altura o marido que, entretanto, tinha sido internado no Sanatório do Caramulo, foi operado a um pulmão, e Olinda esteve muito tempo junto dele. Nessa altura não havia solicitado licença e quase ia sendo descoberta no HCRP, arriscando-se a ir novamente para a “cadeia”. Valeu-lhe a amizade duma Irmã e duma enfermeira que a encobriram.
Algum tempo após o marido ter tido alta do Sanatório do Caramulo, o Sr. Administrador deu ordem para irem buscá-lo para junto de Olinda. Atribuíram-lhes uma casa nos Núcleos Familiares, onde puderam ter uma horta e algumas galinhas. Olinda cozinhava as refeições com a mercearia enviada quinzenalmente pelo próprio hospital e com o conduto e pão que todos os dias lhe chegava quando “a carroça passava”.
Mais tarde, as assistentes sociais visitaram o pai, já depois do falecimento da mãe de Olinda, e percebendo a situação difícil em que se encontrava, tomaram igualmente a iniciativa de o levar para o HCRP, onde esteve quase seis anos. Embora, por vezes, ouvisse coisas que não a agradavam por parte do administrador como: “a senhora devia trabalhar de graça, pois criamos os seus filhos”, e tivesse que responder “eu não vim para cá porque quis, não fui eu que trouxe para cá a minha família”, Olinda admite que teve apoios que não esquece. Como exemplo refere aquele que possibilitou que levasse o seu pai a falecer na sua casa, como era seu desejo, fazendo, o diretor, com que ela fosse acompanhada por um enfermeiro do Hospital na viagem da Tocha até lá.
Quando “veio o 25 de Abril de 1974” o “Sr. Administrador disse-me que quem quisesse ir embora, podia ir” e deu-lhe a escolher: “se quiser eu arranjo-lhe uma casa ali no bairro (dos funcionários), ou se preferir ir para a sua terra eu ponho-lhe os seus filhos na portaria e vai embora.” Olinda, o marido e os filhos acabaram por sair do HCRP, tendo acabado por fixar residência em outra região. Nos primeiros tempos, como não tinham pertences, tiveram que dormir no chão.
Posteriormente, o administrador autorizou a cedência de um colchão, de algumas panelas e galinhas que Olinda e o marido tinham na casinha do Núcleo Familiar, onde habitavam antes de saírem do Hospital. Foi tudo numa carrinha para a nova morada.
Por sugestão da diretora do Preventório, e da assistente social do Hospital, os três filhos mais novos ainda voltaram a frequentar o Preventório e a escola durante mais dois anos letivos até 1977. Paralelamente, a assistente social “ajudou-a muito”, “chegando mesmo a mandar dinheiro e cobertores”. Dos seis filhos que passaram pelo Preventório, a maioria acabou por fazer o equivalente ao 9º ano, uma das raparigas fez até ao 12º ano e outra acabou por se formar em enfermagem.
Fazendo um balanço sobre a missão do hospital, Olinda, hoje com 94 anos, recorda como ficou chocada quando, no hospital e no asilo, se deparou com os doentes ali internados: “nunca tinha visto tal coisa, uns sem nariz, outros sem orelhas, sem dedos, com mãos em garra e com feridas. Faziam-lhes aqueles pensos mas não saravam… era uma tristeza”.
Confessa que nestes casos considera que o HCRP “foi bom para quem tinha a doença pois dessa forma não davam trabalho aos deles” nem “pegavam a doença a ninguém, nem andavam a meter aquela repugnância às pessoas”.
E lembra ainda que “para muitos doentes aquele hospital continuou a ser a sua casa, muitos mantinham-se lá porque não queriam sair…”
*nome fictício.
(Texto baseado em testemunho oral, em 2020, validado pela entrevistada. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge)