Olívia, a vigilante do Preventório

Olívia Neto iniciou funções no Preventório do Hospital Colónia Rovisco Pais em 1970 como vigilante. E recordou momentos dos onze anos em que trabalhou com as crianças.

 

Recorda-se muito bem do primeiro dia: “vim a uma sexta-feira, no dia 1 de outubro de 1970 às 10 horas. Os meus cunhados vieram trazer-me. O Sr. Fernando estava lá nas correntes, onde havia uma escultura que hoje está na pediatria de Coimbra. Ele não me conhecia, e disse-me: Aqui não entra ninguém! Mas eu insisti até que ele acabou por me deixar telefonar para a D. Maria Luísa, que era a diretora.”

 

D. Olívia tinha então trinta anos, mas nunca tinha trabalhado. Explicou: “A minha história é como a do Rovisco Pais. Casei em 1966 e a minha filha nasceu em 1967, mas em 1970 fiquei viúva. Foram quatro anos de casamento. Depois estive seis meses sem trabalhar… Um dia, uma tia minha disse-me: Ó Olivia, você quer ir trabalhar? E eu, com carinha de parva, pois nunca tinha trabalhado, e estava debaixo das saias dos meus pais, respondi: eu queria tia. Como ela era muito amiga da superintendente do Preventório e da Creche, arranjou-me trabalho. Fizeram-se uma entrevista, visto ser para trabalhar com crianças, e entrei. Fiquei interna, e isso custou-me um bocadinho, porque eu tinha uma menina com dois anos e pouco e não a podia lá ter, por isso, ficou nos avós em Cantanhede.”

 

O Preventório era para os meninos “grandes” e tinha lotação para oitenta crianças. A Creche tinha lotação sessenta crianças “havia os bebés, os meninos da roda (4 e 5 anos) e os do jardim escola (5-6 anos)”. Mas não se recorda de quantos havia na altura que iniciou funções. Contou que os meninos nasciam no Hospital e depois eram levados para a creche em carros próprios. “Eu e as minhas colegas íamos ao locutório para as crianças serem visitadas pelos pais.” E quando perguntámos se eles faziam perguntas disse-nos: “As crianças não perguntavam pelos pais, porque alguns nem os conheciam. Eles vivam de manhã à noite connosco e nós é que eramos os pais e mães deles.” 

 

Recordou que: “A Creche era o edifício mais lindo, aquela entrada e aquelas dedicatórias! Azulejos na entrada, os baloiços, os chorões.  À frente dos edifícios havia um “grande parque e um jardim, que era bonito!”

Disse que havia uma professora primária, uma enfermeira, duas educadoras de infância, vigilantes e empregadas, uma cozinheira (que foi sempre a D. Emília Valente) e uma costureira. Todo o serviço era orientado pela D. Maria Luísa, que era superintendente da Creche e do Preventório. Antes dela estava a Irmã Azinhais. “A D. Maria Luísa dava-se muito bem com o Sr. Professor Bissaya Barreto, que era diretor de muitas Casas da Criança….

D. Olívia confessou que: “A nossa superintendente era completa, nós tínhamos um regime de tropa! Quem queria aceitar, aceitava, quem não queria… Nós tínhamos que cumprir. Mas eu gostei, nunca tinha trabalhado na minha vida, mas gostei imenso. Eu tive colegas que entravam de manhã e saiam à noite. Porque a D. Maria Luísa dava aqueles berros…que assustava.” Contou mesmo um episódio logo quando iniciou funções: o Dr. Santos Silva ia visitar as crianças e um dia a D. Maria Luísa estava a falar alto ao telefone, e eu comentei com a minha colega Carlota: aí a Senhora está a ralhar tanto… E ela respondeu-me. Ela é assim, não se importe. E eu, fiquei descansada. Nunca tive problemas, mas já se sabe que agente tinha que andar direitinho. Mas muitas pessoas não aceitavam! Tínhamos que cumprir, e se assim fosse estava tudo bem.”

 

Quisemos conhecer melhor o quotidiano e D. Olívia contou: “Pegávamos às sete horas, à porta do quarto da nossa superintendente. Ela não queria cabelos caídos e tínhamos que estar bem fardadas. Só saíamos às oito e meia da noite. Não tínhamos hora para almoçar, só comíamos depois dos meninos.  De noite, não tínhamos cadeira para dormir, era abaixo e acima no edifício! O trabalho era muito exigente. Tínhamos apenas um dia por semana de folga. Saíamos ao nascer do sol! Parece uma anedota, mas isto é verdade! E tínhamos que entrar antes do sol posto nas correntes (portaria). E eu ia ver a minha filha. Ia na camioneta para Cantanhede. Eram sete e quinhentos para cá e sete e quinhentos para lá. Eu saia do Preventório com o sol já todo. E, por isso, eu tinha que andar à procura dos horários das camionetas. A minha vida era um grande problema!”

Sobre o trabalho com as crianças, D. Olívia contou que: “A superintendente pôs-me logo nos grandes. Tinha lá meninos que às vezes até nos diziam uma coisas valentes… O que vale é que eu também já tinha um pouco de calo de vida, e por isso, algumas deixava-as cair no chão, mas outras nem por isso. Tivemos lá meninos com 16, 17 e 18 anos! Ora um menino com 18 anos é um homem! Tinha que se ter cabeça e visão para levar aquilo como deve ser! Porque eles ali não tinham mais ninguém. Tinham-nos a nós. As outras funcionárias saíam à hora e nós, as vigilantes, é que estávamos sempre. Tínhamos uma responsabilidade enorme! Deus me livre que desaparecesse um menino. Íamos para o olho da rua!”

 

No Preventório havia uma escola primária, mista, que as crianças frequentavam a partir dos sete anos. Depois, no ciclo, já frequentavam as escolas no exterior. “A professora dava aulas até às três horas e depois entregava-me os meninos para eles fazerem os deveres, a tabuada, os problemas, e a gente a tinha que perguntar os verbos… Eu aprendi muito com eles! Depois do exame da 4ª classe eles foram para o ciclo de Cantanhede. Numa carrinha e aí, ora ia eu, ora ia outra colega.”

Hoje, refletindo, constata que: “Tomávamos conta de muita criança! E tem que se pensar e imaginar o que poderia acontecer ou como é que se podia lidar, porque a gente não sabe, se temos um ou dois meninos, às vezes acontecem coisas desagradáveis, dentro daquela turma toda podia acontecer alguma coisa! Mas nunca aconteceu um acidente!” e prossegue recordando um dos momentos em que mais receou: “A mim aconteceu-me, uma vez, com um recém-nascido que foi do hospital lá para cima, e a enfermeira deixou-mo lá deitado de barriga para baixo. Eu fiquei durante a noite sozinha, e fiquei preocupada, mas ela disse que ele não ia vomitar… Foi uma noite de aflição, porque eu não sabia nada, acho que não tinha preparação para aquilo… Não aconteceu nada de especial, mas custou-me muito!”

 

De sorriso fácil, ao recordar aqueles tempos, D. Olívia prossegue com vivacidade, partilhando algumas peripécias com os “meninos”, nomeadamente uma “epidemia de piolhos” e que andava tudo com toalhas e “cabeças brancas”, ou daquela vez em que fizeram chinelos, cortando sapatos da D. Maria Luísa. Confessou que havia meninos “muito traquinas”. “Um deles, que hoje é padre, mas na altura era bem traquina chamou-me caixa de óculos”.  Outra vez: “Tivemos um menino que tinha anemia. Então havia a preocupação de ele comer todos os dias um bife, mas ele metia aquilo na boca mascava, mascava, mas não comia. Entretanto veio o verão. E havia muita higiene… Víamo-nos ao espelho no chão! Mas nunca se vê tudo… Um dia apareceram uns bichos debaixo da mesa, e foi aí que descobrimos – ele punha a carne na boca mastigava e deixava a gente sair, para a colar debaixo da mesa! E, assim conseguiu enganar a gente! A nossa
preocupação… de a nossa superintendente se aperceber destas coisas… dizia logo: porque as meninas não vêm…porque assim, porque assado…”

 

D. Olívia contou que: “Havia ordem para os castigar. Naquele tempo, era diferente, até os pais pediam às professoras para baterem nos filhos se eles não se portassem bem. A gente dava-lhe os castigos que eles mereciam. Tínhamos meninas, que eram senhoras. Algumas já todas arrebitadas, já não iam como a gente queria… Um dia, um dos grupos mais reguila, fugiu e regressaram todos farruscos. Coloquei-os de castigo, de joelhos no corredor e disse-lhe que não viam televisão. Estavam eles no castigo e apareceu o Dr. Raúl, que era de Clínica Geral. Contei-lhe o sucedido e ele disse-me, deixe-os estar!”

 

Mostrou-nos algumas fotografias do tempo em que trabalhou no Preventório ao mesmo tempo referiu: “Tínhamos lá meninos lindíssimos, tinham uma pele aveludada! Os bebés tinham uns berços, era tudo muito estimadinho. Eram muito bem tratados, tiveram tudo, e até iam no verão para a praia da Gala. Só não tinham pai, nem mãe!”

E quando o Professor Bissaya Barreto lá ia com os estudantes de medicina “Os meninos eram preparados com os vestidinhos novos. As vigilantes e funcionárias com fardas novas!” 

 

Depois, quando fechou o Preventório, após o 25 de Abril, “eu e as minhas colegas fomos transferidas aqui para o Hospital, para a ação médica com os doentes” onde esteve mais alguns anos até completar 37 ao serviço. Aposentou-se em 2007… “Trabalhava aqui muita gente” e foi recordando alguns dos médicos que ali conheceu:  Dr. Sousa Silva, da radiologia, Dr. Chaves de Carvalho que era dentista, o Dr. Barbosa da dermatologia, o Dr. Zamith, e o Dr. Raúl de clínica geral…. “Era uma obra muito completa. Isto antes, era muito bonito. Era um laranjal enorme, era a vacaria, pocilgas, casa onde fabricavam o queijo, a padaria, a cozinha. 

Isto era uma Obra…tinha tudo. Tudo era feito para os doentes!”

 

Texto baseado em testemunho oral, em 2022. Validado pela entrevistada. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge