Vidas suspensas, apoios múltiplos
Manuel residia numa aldeia perto de Portela do Fojo, a cerca de 17 km da Pampilhosa da Serra. Nascido em 1916, era um dos nove filhos nascidos de uma união entre dois habitantes da aldeia. Alguns irmãos ainda permaneciam na zona, já com as suas famílias, outros haviam partido para Lisboa em busca de melhores empregos. Manuel habituara-se às lides da agricultura e da pastorícia que era possível nos campos pequenos e rochosos, mas banhados pelos rios Zêzere e Unhais, por isso, acabou por ficar.
A religiosidade da aldeia onde nasceu e cresceu espelhava-se quer nas alminhas e cruzeiros, que pontilhavam as ruelas e caminhos da aldeia, quer nas festas e romarias que faziam a alegria das populações e possibilitavam a convivência da juventude que ali abundava ainda. A festa de Santa Bárbara era sem dúvida uma das mais concorridas e onde se reencontravam rapazes e raparigas, que, sem saber, seriam futuros esposos. Muitos, enamorados desde as sementeiras ou desfolhadas, renovavam promessas e intenções em plena licitação tradicional do milho à porta daquela capela seiscentista.
Não se sabe como Manuel conheceu a sua esposa, e já não é possível perguntar, mas acabou por casa com Carmelinda, uma jovem também da aldeia, e a sua história de namoro poderia ter sido como as que anteriormente descrevemos. De qualquer modo, através dos arquivos do Serviço Social do Hospital Colónia Rovisco Pais (HCRP) foi possível recuperar alguns aspetos das suas vidas durante quase uma década. Período em que a família foi acompanhada por aquele serviço, até à data em que Manuel terá tido alta definitiva do Hospital.
Em janeiro de 1959, quando Manuel foi examinado pela Brigada Móvel do Hospital Colónia Rovisco Pais, no Posto Médico de Alvares, o inquérito realizado pela assistente social permitiu concluir que a família vivia em condições económicas “precaríssimas”.
Segundo, os registos efetuados pela assistente social, o casal residia numa casa arrendada com quatro compartimentos, e pagavam 120$00 anualmente. A casa, em xisto, não tinha luz elétrica ou água canalizada e possuía três janelas apenas.
Manuel, com 43, e a esposa com 42 anos, eram trabalhadores rurais e auferiam dessa atividade um ganho incerto de 20$00 e 9$00, respetivamente. Ambos se encontravam debilitados de saúde.
O filho mais velho, com 15 anos, trabalhava na Companhia Colonial de Navegação em Lisboa, ganhando 10$00 por dia. O filho mais novo, com 14 anos, era seminarista no Seminário da Consolata em Fátima, e Manuel pagava 100$00 de propinas por mês.
Três meses depois do exame médico realizado pela Brigada Móvel, Manuel foi internado no HCRP na Tocha no dia 24 de Abril de 1959. Padecia de doença de Hansen e necessitava de tratamento. Desconhecia-se a fonte de contágio mas sabia-se que um dos irmãos residentes em Lisboa era doente.
Em maio do mesmo ano, Carmelinda, que necessitava de ser operada, foi auxiliada pelas assistentes sociais do HCRP, e junto do Presidente da Câmara de Pampilhosa da Serra, conseguiram obter as necessárias guias e dar entrada nos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde foi submetida a uma intervenção cirúrgica.
A situação económica da família agravava-se ainda mais, por isso, além de tratar a doença de cada um, importava, minimizar também as carências do casal e dos filhos.
O Serviço Social do HCRP tinha um papel ativo no acompanhamento da situação dos doentes e suas famílias, e o caso de Manuel não fugiu à regra. A minimização do impacto psicológico que o isolamento e o tratamento dos doentes provocavam, bem como as carências económicas das famílias eram áreas de intervenção do Serviço Social, que se materializavam num conjunto bastante vasto de iniciativas no interior e no exterior do hospital. Neste caso, são visíveis, na documentação consultada, algumas dessas iniciativas.
Assim, em julho de 1959, por intervenção do Serviço Social, Manuel solicitou e obteve autorização para, com uma licença especial, poder acompanhar a esposa a casa após a alta hospitalar e ficar alguns dias com ela na residência de ambos. A par da ajuda à assistência médica, a família recebeu, por intermédio das assistentes sociais, um auxílio de 1000$00 para amortização de dívidas na mercearia, e de 400$00 para auxílio e cooperação familiar.
Manuel enfrentava uma situação que, de diversos prismas, se afigurava difícil de gerir – a sua doença, a da esposa, a impossibilidade de ganharem o sustento e a dificuldade de cumprir o pagamento das propinas do seminário do filho mais novo.
No HCRP, o Serviço Social ia acompanhando toda a situação e os documentos mostram que fizeram diversas diligências para canalizar verbas de auxílio destinadas a esta e outras finalidades prementes, quer solicitando subsídios ao administrador do Hospital e ao Instituto de Apoio aos Leprosos, quer à Associação de Proteção aos Hansenianos e Famílias.
Em 1960, ao longo de vários meses, foram concedidos auxílios monetários que totalizaram 818$00 para o pagamento das despesas no seminário. Em abril, quando Carmelinda recebeu uma visita domiciliária de uma equipa do HCRP, as assistentes sociais referiam: “a esposa devido a uma intervenção cirúrgica apenas pode fazer trabalhos leves. Tem que pagar a quem lhe cultive umas pequenas propriedades que traz de renda, não obtém o suficiente para manter-se. Vimos que não tinha em casa com que se alimentar…” Por isso, foi auxiliada com a verba de 100$00 para pagamento à mercearia, e com a aquisição de géneros de mercearia, no valor de 62$80.
Entretanto, o filho mais novo acabou por ter que abandonar o seminário, regressando para a casa paterna. Este facto, juntamente com a progressiva melhoria dos pais, terá amenizado a situação. No ano seguinte as quantias de auxílio recebidas por intermédio do HCRP passaram a ser menores e menos frequentes.
Anos mais tarde, voltam a surgir registos de apoios a esta família. Em 1967 foi mesmo concedido um auxílio de 250$00 para amortização da renda do quarto do filho, que continuava a trabalhar em Lisboa, e outro de 400$00 concedidos pelo Instituto de Apoio aos Leprosos.
Manuel foi melhorando e em setembro de 1967 acabou por conseguir uma licença prorrogável.
Voltou ao Hospital em março de 1969 para tratar da alta definitiva, e regressou à sua aldeia natal com auxílio no pagamento da viagem.
(Baseado em documentos do Arquivo do HCRP. Pesquisa e redação por Cristina Nogueira – CulturAge)