Vítor, memórias, medicina e radiologia

O Dr. Vítor Carvalheiro é natural de uma aldeia do concelho de Montemor-o-Velho, Bunhosa, próximo da Tocha. A sua origem acabou por ser determinante na ligação ao Hospital Rovisco Pais conforme partilhou no início da nossa conversa: “tinha uma ligação grande a tudo aquilo, ainda hoje tenho um grande carinho pelo Hospital”.

 

Terminara o curso de medicina na Universidade de Coimbra em 1978, de seguida “realizou a parte de saúde pública e o serviço à periferia, que por sorteio calhou em Arganil” (1980 e 1981). Estava no início da carreira. Seguia-se o exame de especialidade, mas precisamente naquela altura estes foram interrompidos.

 

 

Quando em 1982, o Dr. Vítor foi para o Hospital Rovisco Pais estávamos a passar por “uma altura difícil… eu tive que esperar três ou quatro anos para poder fazer o exame de especialidade. Cheguei a P5 (policlínico), que era algo impensável!”

 

 

Recorda, “havia ainda doentes internados mas eram sobretudo casos sociais com a doença ativa. Eram medicados com todas as medicações possíveis.” Não era terapêutica curativa mas paliativa”.

 

Relativamente aos doentes internados e às instalações do hospital refere: “lembro-me muito bem da D. Olinda, do Sr. Domingos e de todos os que ainda viviam lá, alguns deles nas casas periféricas dos núcleos. Aquilo era de uma dimensão extraordinária… Só a Creche e o Preventório deram para fazer um liceu, portanto aquilo era brutal”.

 

 

O Dr. Vítor referiu que viviam em comunidade: “Nós estávamos naquelas casas do bairro dos funcionários, tínhamos alimentação do hospital e telefone e em caso de necessidade acorríamos a qualquer urgência que existisse dentro do hospital ou nas casinhas – às vezes uma gripe, uma pneumonia, uma queda, etc.. E ainda fiz uma ou duas brigadas”.

 

Não esquece as muitas amizades feitas para a vida com todos os funcionários que ali residiam, a família Pais Alves, o Sr. Pereira, o Guilherme bem assim como o Padre Afonso que o Dr. Vítor relembra, com saudade: “(…) foi uma pessoa importante para todos nós e na instituição. Era engraçado… Se nos íamos divertir ele ia connosco, mas sempre com um comportamento exemplar e nós na brincadeira chamávamos-lhe o Engenheiro Reis. Era um homem espantoso… Bom, dedicado e sempre disponível para ajudar todos!”

 

 

No domínio da atividade clínica, o Dr. Vítor partilhou como se envolveu no domínio da radiologia, onde depois realizou o exame de especialidade. “Estando lá fiz exame de especialidade, entrei para radiologia, coloquei o serviço de radiologia a funcionar. Fazia-se a radiologia possível. A revelação era manual com regulador e fixador e em tinas. Era tudo feito por nós, à mão. Quando eu saí estava tudo a funcionar, um pouco obsoleto, mas dava para fazer extremidades… Porque aquela doença para além da destruição que o bacilo provocava tinha outras comorbilidades coexistentes, e outras infeções, como os chamados “mal perfurante plantar” que por vezes levavam a pequenas amputações, na tentativa de ajudar os doentes. O Dr. Aguiar de Melo fez muitas e eu também o ajudei algumas vezes. Portanto, era necessário fazer um certo controlo sobre a doença e as suas manifestações e por isso ainda fizemos muita radiologia lá”.

 

No âmbito da doença, o Dr. Vítor partilhou alguns episódios relacionados com os doentes, que teve contacto, dentro e fora do hospital. “Aquilo a partir de uma altura era um estigma brutal…Era o isolamento total! (…) na minha aldeia havia pelo menos umas quatro ou cinco pessoas que sofreram da doença. Ainda me lembro de uma das senhoras que fui ver a pedido da filha com uma situação oncológica visível e grave e que não foi ao médico… Mas o estigma… Só de ir a um médico, de ir a um hospital, porque era leproso… Parava tudo, está a perceber? Mais tarde vinham ter comigo para os ajudar porque sabiam que eu conhecia a doença… (…) Mas durante muito tempo até o jogar às cartas, à sueca no café, não lhes estava “autorizado”…só muito mais tarde”.

 

Tentando perceber melhor este fenómeno, o Dr. Vítor elucidou-nos: “O estigma era reciproco. Eles retraiam-se e a comunidade também não os aceitava porque tinha medo. Essencialmente por medo…Esse era o grande problema da lepra… era o contágio. Era a loiça toda separada. Na própria casa era tudo separado eles não podiam mexer no que era dos outros”.

 

 

Outro aspeto referido era a falta de cumprimento dos tratamentos: “Uma vez fui numa brigada e vi que o porco estava castanho e luzidio porque lhe davam a medicação – portanto eles não a tomavam e davam-na ao porco! Eu lembro-me vários casos. Analisando em retrospetiva, eles eram postos de parte e era natural que tivessem uma certa revolta”.

 

Sobre o que está na base do estigma, e sobre a questão do contágio, o Dr. Vítor acrescentou: “Hoje em dia com as estas novas doenças, não sei o que será do COVID… Mas por exemplo quando apareceu a Sida, reapareceu a tuberculose, e entretanto reapareceu a lepra. Temos muita lepra outra vez em África. Isto é um drama. Aquilo é um bacilo, é um ser vivo que se transmite e portanto nunca nos podemos esquecer destes ciclos dos pequenos organismos. Nós sabemos que há várias vias de contágio. Pelo menos as pápulas e feridas transmitiam, o corrimento nasal e bocal também, o sangue, e hoje em dia pensa-se que inclusivamente as lágrimas também… Aliás era uma coisa que já na altura tínhamos cuidado – o Dr. Américo Barbosa, que era o diretor clínico, dizia-nos: – vocês tenham cuidado com a lágrima!” Pois como explicou o Dr. Vítor: “Os doentes quando eram atingidos na face a pele retraía-se como se fosse uma queimadura, verificava-se então também a retração do saco lacrimal e por isso quase todos os doentes lacrimejavam”.

 

 

Em 1993, quando o Dr. Vítor saiu do Hospital este ainda não tinha sido reconvertido: “Falava-se, na altura, que era necessário um segundo Alcoitão e foi o que veio a acontecer”.

 

 

Destas e de outras memórias se fez o trajeto do Dr. Vítor no Hospital Rovisco Pais: “numa fase da minha vida em que estava em crescimento, em evolução da minha carreira”.

 

 

(Texto baseado em testemunho oral, em 2020, validado pelo entrevistado. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge)