Irene. Involução e reconversão do Hospital
Irene Louro formou-se na Escola de Enfermagem das Franciscanas Missionárias de Nossa Senhora no Porto. Antes de trabalhar no Hospital Rovisco Pais, tinha trabalhado no Hospital de Aveiro, no Hospital de Cantanhede e na Escola de Enfermagem da Guarda. Por razões pessoais, optou pela carreira hospitalar e foi como enfermeira-chefe para a Tocha em 17/10/93. Aposentou-se a 31/12/2014.
Quando ali foi colocada, a Enf.ª Irene recorda que a instituição estava “numa fase de transição, falava-se em várias hipóteses de reconversão da instituição, e que algum tempo depois o Hospital passou a Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro – Rovisco Pais.”
Na altura haveria cerca de três dezenas de utentes ou ex-doentes de Hansen, sem doença ativa. Com o passar do tempo alguns foram falecendo e quando a Enf.ª Irene se aposentou já só havia 12 utentes. “Era um Hospital sem movimento, ou seja não tinha entradas de doentes”. Dos utentes que lá encontrou, a Enf.ª Irene recorda que “havia alguns independentes, mas havia doentes dependentes e, alguns muitos dependentes. Eram seguidos pela Dr.ª Maria de Lurdes médica dermatologista e pelo Dr. Pagaimo médico de medicina interna. Para outras consultas de especialidades eram levados aos Hospitais da Universidade de Coimbra. E os utentes dependentes tinham acompanhamento médico e de enfermagem 24 horas por dia”.
A Enf.ª Irene relembra que “alguns destes doentes ainda apresentaram pontualmente resultados positivos nas análises para despistagem da doença de Hansen, mas não estavam em fase de contágio. Na generalidade dos utentes ali existentes eram percetíveis as marcas deixadas pela doença: quer pela fácies – com formato da boca, nariz, sobrancelhas característicos destes doentes, quer ao nível dos membros com feridas e perfurantes, amputações por lesão ou ausência das extremidades das mãos ou pés como consequência da degenerescência dos ossos resultante do processo da doença”. Outro aspeto marcante de que se apercebeu logo nos primeiros tempos foi que “(…) havia segregação ainda, não da parte dos profissionais de saúde e das pessoas que ali trabalhavam mas da parte dos próprios utentes. Eles sentiam ainda o estigma da doença. Tinham aquilo incutido neles e por isso evitavam o contacto, por exemplo de um simples beijo…”.
Os ex-doentes que permaneciam na instituição não regressaram às famílias por diversas razões: por opção própria, pela inexistência de retaguarda familiar, essencialmente devido à desintegração e ao corte de ligações, outros porque se tratavam de casos sociais. Enquanto permaneciam no Hospital, “usufruíam de todos os cuidados de saúde inerentes a um internamento normal” conta a Enf.ª Irene. Toda esta assistência era gratuita, por isso geriam os seus bens e pensões sem esse encargo. A grande parte deles “não eram visitados pelas famílias e permaneciam até aos últimos dias. Nós eramos a família deles! O contato permanente e muito presencial ao longo dos anos acabou por fomentar a amizade e criar laços afetivos, por isso eles viam-nos como a sua família!”
Da história daquele hospital, a Enf.ª Irene recorda que ficou “muito surpreendida com a organização que o hospital teve” e da qual foi tendo conhecimento quer pelas histórias que lhe contavam, quer por evidências ainda visíveis no património que foi sobrevivendo às vicissitudes institucionais e do tempo. Neste sentido, a Enf.ª Irene, partilha alguns dos conhecimentos sobre a história da instituição que foi obtendo e que motivaram mesmo a que, juntamente com o Enf.º Mário Bexiga, reunissem diversos materiais e equipamentos do antigo hospital no edifício conhecido por locutório, junto à portaria, com vista à criação de um museu.
O Hospital antigo, como refere a Enf.ª Irene, “era uma pequena aldeia autossuficiente e tinha rádio próprio, cinema ao ar-livre, correios, vacaria e pocilga…até prisão. (…) A capela com um tipo de construção única, funcionava da seguinte forma: o padre posicionava-se no altar, no centro da capela, e via toda a gente, os funcionários estavam em frente ao padre, depois numa ala estavam os homens e na outra, do outro lado, as mulheres. Mas independentemente da separação de géneros nasciam meninos… Realizavam-se partos assépticos e imediatamente após o nascimento iam para o Preventório… Os pais visitavam-nos depois na portaria através dos vidros, mas não lhes tocavam, no chamado Locutório. (…) Quando as meninas cresciam passavam a residir no Asilo (onde agora são os cuidados continuados). Ali residia com elas uma ex-doente, que era senhora culta e lhes ensinava a ser e a estar, a bordar, etc. Como os homens não podiam “tocar” nas meninas, chamavam àquele lugar o Tarrafal”.

A autossuficiência do antigo hospital abrangia ainda sectores como a farmácia ou até o laboratório. A Enf.ª Irene recorda a explicação que o Sr. Ângelo, que era técnico de farmácia, lhe deu sobre as diversas máquinas de fazer comprimidos e pomadas. “A Farmácia fazia a medicação e as ligaduras como as de Edoli, manipulados, pomadas, bálsamo composto, vitamina A, comprimidos DDS…”
Sobre a história daquele hospital a Enf.ª Irene mencionou ainda: “quem conhece as obras do Professor Bissaya Barreto sabe que queria o melhor para os doentes… No Hospital Rovisco Pais eles tinham loiças da Vista Alegre e de pirex francês. E em termos de equipamentos também. Os doentes, como sofriam de problemas ósseos, recebiam tratamentos numa sala no rés-do-chão do hospital onde havia equipamentos para fisioterapia – tinas parafina e de parafango e tanque Hubbart, barras paralelas entre outros. Havia um antigo enfermeiro-chefe que tinha feito especialização em enfermagem de reabilitação e fazia estes tratamentos mas quando ele se reformou deixaram de ser feitos. Quando se deu início ao Centro de Reabilitação, o tanque Hubbart foi mais tarde levado para o edifício da Reabilitação Geral para fazer hidroterapia, e posteriormente, quando se criou o serviço de ambulatório foi para o pavilhão novo, onde hoje se situa a piscina”.
Pela especificação dos sintomas e manifestações da doença de Hansen e estruturas existentes no antigo hospital ainda eram evidentes técnicas próprias, que foram sendo desenvolvidas ao longo dos tempos.
Havia rotinas enraizadas e que eram difíceis de mudar pelos profissionais que já estavam no Hospital há mais tempo. A Enf.ª Irene recorda que “quando lá cheguei tinha uma perspetiva dinâmica e diferente que permitiu implementar novas regras e modos de organização, desde logo na sala de pensos e na terapêutica. Assim, em conjunto com o Enf.º Mário Bexiga, foi possível inovar e quebrar algumas rotinas. E depois, fomos fazendo formação…”
A Enf.ª Irene acompanhou o processo de reconversão do Hospital em Centro de Reabilitação e sobre esta fase e o início da sua nova atividade recordou: “Estive no projeto. Foi uma fase muito complicada. Não em relação aos utentes, pois estes estiveram sempre salvaguardados. Eles temeram, ficaram com medo, mas estiveram sempre protegidos!”.
O Centro de Medicina de Reabilitação da Região Centro-Rovisco Pais foi criado pelo Decreto-Lei n.º 203/96, de 23 de Outubro, enquanto entidade inserida no Serviço Nacional de Saúde. Nesse decreto ficou consignado que deveria ser assegurada a continuidade de cuidados a todos os doentes que se encontravam internados.
A Enf.ª Irene considera que “o principal impulsionador deste decreto e da efetiva reconversão do hospital em Centro de Reabilitação foi o Dr. Santana Maia, médico influente que foi bastonário da Ordem dos Médico e conhecedor da obra de Bissaya Barreto”. Explica que entre a publicação do decreto de criação e o início das obras de reconversão haviam passado quase cinco anos. Como “as obras de construção nunca mais avançavam, o Conselho de Administração, de que faziam parte o Dr. Santana Maia, o Dr. Arenga e o Enf.º Bexiga, conseguiu a disponibilização de verba para as obras e obteve também a devolução por parte dos Serviços Sociais do Ministério da Saúde de um dos pavilhões que estava em melhores condições para nele instalar o ainda hoje existente Serviço de Reabilitação Geral”. Várias foram as vicissitudes neste processo, inclusivamente para que o pavilhão fosse desocupado a tempo. A Enf.ª Irene partilha que “tivemos que nos juntar todos a uma quinta-feira pois na segunda-feira começaram as obras”. Igualmente recorda os desafios que enfrentaram, nomeadamente na necessidade de criarem serviços de retaguarda, mas sobretudo, de como foi importante a contratação de duas médicas fisiatras – Dr.ª Margarida e Dr.ª Arminda para iniciarem o Serviço de Reabilitação.
Os primeiros doentes foram recebidos em 2002 e a Enf.ª Irene recorda que “o primeiro doente foi assumido pela Dr.ª Margarida Sizenando. Foi uma grande responsabilidade. Mas a opção seguida pelo Conselho de Administração para chegar a este resultado foi estratégica e vital para que o processo seguisse em frente. O facto de ter começado nesse pavilhão fez com que o Centro de Reabilitação fosse um processo irreversível, e originasse o Centro de hoje.
(Texto baseado em testemunho oral, em 2020, validado pela entrevistada. Entrevista e redação por Cristina Nogueira – CulturAge)
